sábado, 6 de junho de 2020

Puritanismo do Espírita

Livro: Mereça Ser Feliz
Autora Espiritual: Ermance Dufaux

Capítulo 21

"O objetivo da religião é conduzir a Deus o homem. Ora, este não chega à Deus senão quando se torna perfeito. Logo, toda religião que não torna melhor o homem, não alcança o seu objetivo. Toda aquela em que o homem julgue poder apoiar-se para fazer o mal, ou é falsa, ou está falseada em seu princípio. Tal o resultado que dão as em que a forma sobreleva ao fundo. Nula é a crença na eficácia dos sinais exteriores, se não obsta a que se cometam assassínios, adultérios, espoliações, que se levantem calúnias, que se causem danos ao próximo, seja no que for. Semelhantes religiões fazem supersticiosos, hipócritas, fanáticos; não, porém, homens de bem".

"Não basta se tenham as aparências da pureza; acima de tudo, é preciso ter a do coração."

O Evangelho Segundo o Espiritismo - Capítulo 8 - Item 10

O puritanismo de alguns espíritas, nada mais é que a vivência exterior do espiritismo, a criação de "protótipos de conduta" através de hábitos e costumes padronizados do tipo "espírita faz isso ou não faz aquilo". 

O puritano é aquele que tem "códigos de identificação exterior", verdadeiros ritos e chavões doutrinários que esquecem automaticamente tão logo se afastem dos locais de pregação e devoção.

Necessariamente o puritano não é um hipócrita, pode estar apenas vivendo um estágio de elaboração íntima na sua melhoria pessoal e necessita de "escoras" e "imitações" para, pouco a pouco,  internalizar o que ainda permanece somente na órbita de seus pensamentos sem atingir seu modo de sentir. O problema surge quando há uma preferência por fazer amostragens de conduta espírita, teatralizando comportamentos e discursos com a única intenção de impressionar ou convencer, permanecendo nessa atitude anos após anos sem autenticidade e sinceridade.

A vivência real dos postulados espíritas é íntima no reino dos pensamentos e das tendências, dos sentimentos e dos ideais.

Ser puro é uma questão íntima. Foi Jesus quem disse que o Reino de Deus não viria com aparências exteriores (1). Ele também disse que os puros de coração veriam a Deus (2).

Ser puro é a aspiração evolutiva mais elevada que se pode conceber em nosso estágio de vivências. O puritanismo, ao contrário, é algo exterior, uma “fachada” da atitude que não corresponde a valores autênticos. O rigorismo, o ascetismo, o moralismo são algumas de suas manifestações. No excesso de rigor aplicado ao  comportamento próprio e das demais pessoas, é o radicalismo; na recriminação sistemática às questões mundanas é o ascetismo; na adoção constante de procedimentos artificiais aceitos como linhas comportamentais de um determinado grupo, é o moralismo.

Entre convivas espíritas são as ações e costumes tidos como coerentes com aquilo que a comunidade elegeu no seu padrão, criando estereótipos de “religiosos Kardecistas”. Algo muito melindroso essa questão do estereótipo! Primeiramente porque pode constituir apenas um comportamento exterior, e depois porque incentiva exclusões e sectarismo para quem não esteja rigidamente de acordo com os perfis socialmente aceitos pela  comunidade doutrinária.

O princípio das boas relações com o outro é estar bem consigo e o puritanismo é indício de uma má relação com a vida interior. Quase sempre as atitudes puritanas escondem imperfeições com as quais não se deseja fazer o auto-encontro. Como esse enfrentamento é difícil, através de mecanismos de defesa faz-se uma transferência para o outro, nascendo a postura que denota moralismo ou desajuste com o mundo externo.

Esse moralismo e desajuste podem ser percebidos em ações de recriminação, preconceito e reclusão, inclusive em nossos círculos espiritistas. Evidentemente, o homem agraciado com a luz do conhecimento espírita deverá ter um perfil adequado às propostas morais e sociais que o Espiritismo concita, conquanto devamos reconhecer que a má interpretação desse conhecimento enseja a presença de ostensivo desvirtuamento acerca daquilo que seja ou não essencial e educativo em matéria de conduta espírita.

Algumas temáticas pertinentes à vida no corpo físico demonstram com realismo a tese que estamos defendendo. Basta que façamos algumas interrogações e deixemos o debate ao sabor doa amigos espíritas que se encontram na experiência física: Como tem sido o relacionamento com o dinheiro? Qual tem sido o posicionamento diante das questões da sensualidade e do afeto? Que se tem realizado no campo político social? Que contribuições são oferecidas na comunidade do bairro? Como andam as relações com os vizinhos que partilham ritmos de vida diversos? Que contributos se tem oferecido ao progresso do ambiente profissional de sua atuação? Os impostos são pagos com honestidade? Que cuidados são oferecidos ao corpo físico relativamente à sua beleza e saúde? Que ambientes e hábitos são escolhidos para diversão?

Notem que as indagações são bem pertinentes à sociedade terrena, a escola dos reencarnados. A razão desse enfoque é a de aferir a relação íntima com as questões do vosso mundo, porque a relação perturbada com essas e outras questões pode ensejar um puritanismo, um frágil e artificial relacionamento com as vivências necessárias ao progresso do espírito no mundo corporal.

Puritanismo é passar-se por puro sem o ser.

A pureza na Terra é relativa ao grau de aperfeiçoamento do estágio ainda inferior em que se encontra.

Os grandes homens puros da humanidade viveram no mundo sem ser do mundo, eis a nossa reflexão.

A soma do puritanismo de vários espíritas  redunda em fazer do centro espírita ou do movimento uma "ilha paradisíaca" distante das problemáticas da sociedade, criando uma reclusão obstinada e confortável. Porém, espera-se o oposto de todos os homens laureados com a espiritualização de si mesmos. Espera-se aproximá-los o quanto possível, de forma justa e útil, dos assuntos humanos, cooperando com a purificação paulatina da humanidade. Não serão "modelos puritanos", inconsistentes e conversionistas, que promoverão a regeneração. Referimo-nos à participação pró-ativa, não necessariamente em partidos políticos, mas no ambiente onde se vive. Que adiantará para a libertação do passado ignominioso que acompanha a maioria de nós, se não lograrmos ser alguém melhor e mais solidário dentro do próprio lar? Que avaliação fazer de uma convivência "santificada" nas organizações espíritas, mantendo uma personalidade mutável e submissa aos hábitos deseducativos que nutrem os grupos de atuação social onde se movimenta?

Os “Guias da Verdade” apontaram excelente diretriz acerca desse insulamento quando afirmaram: “Fazer maior soma de bem do que de mal constitui a melhor expiação. Evitando um mal, aquele que por tal motivo se insula cai noutro, pois esquece a lei de amor e de caridade (3).

O puritanismo é exterminado com coerência, adequação interior, assumindo o intransferível compromisso de enfrentar nossas mazelas.

Ser puritano é “fazer de conta”, e isso é um péssimo caminho para quem deseja ser feliz.

Que os grupos doutrinários trabalhem para que haja mais lealdade ao que se aprende e diz entre as suas “quatro paredes”. Cultivar sólida fraternidade, a fim de formar um ambiente que se permita “ser quem é”, onde haja campo para discutir: como parar de teatralizar quem gostaria de ser? Como atingir a meta de ser quem devemos e temos condições de ser?

Essa será uma importante discussão para os destinos da causa.

Estudemos com afinco e verificaremos que o orgulho é o grande patrocinador das atitudes puritanas, levando a criatura a imaginar ser alguém que, de fato, ela ainda não é. Via de regra essa imaginação especula em cima de uma auto-imagem super elevada, melíflua, tênue, “sagrada”...

Coloquemos os “pés no chão”, a Terra pode contar com a contribuição espírita.

Ao invés de se tomar a iniciativa de querer levar essa “pureza artificial” adotada em muitos centros doutrinários para a sociedade, tome-se a rota inversa e busque as lutas pessoais que se tem no mundo para tornar-se material de estudo e debate dentro dos centros, solidificando, posteriormente, uma conexão realista e eminentemente colaborativa com a abençoada sociedade acolhedora em que se renasceu.

Puritanismo, em muitos casos, é a outra face da hipocrisia. Talvez essa a razão da afirmativa do sábio Codificador: “Não basta se tenham as aparências da pureza; acima de tudo, é preciso ter a do coração”.


1. Lc 17:20
2. Mt 5:8
3. O Livro dos Espíritos – Questão 770A

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