domingo, 31 de julho de 2016

Disciplina dos Desejos

Reforma Íntima Sem Martírio - Capítulo 26


“Quantos se arruínam por falta de ordem, de perseverança, pelo mau proceder, ou por não terem sabido limitar seus desejos!”

O Evangelho Segundo o Espiritismo – Capítulo 5 - Item 4


Quando desejamos o bem, sentimos o amor, a compaixão e a fraternidade pelo outro.

Quando desejamos o mal, sentimos o ódio, a raiva e a indiferença pelo outro.

Quando desejamos estagnar, sentimos a preguiça, o pessimismo e a descrença.

Quando desejamos o progresso, sentimos o idealismo, o otimismo e a fé.

Entre nós é muito conhecido o enunciado “Desejando, sentes. Sentindo, mentalizas. Mentalizando, ages” (1), que estabelece uma realidade quase geral sobre a rotina da mente.

Desejo, fenômeno da vida mental inconsciente, conquista evolutiva de valor na formação da consciência. Podemos classificá-­lo como uma inteligência instintiva, ampliando o horizonte das pesquisas modernas sobre a multiplicidade das inteligências.

Temos o desejo de viver, desejo dos sentidos, desejo de amar, desejo de pensar, desejo de raciocinar, desejo de gratificação, todos consolidados no que vamos nomear como inteligência primária automatizada, guardando vínculos estreitos com as memórias estratificadas do psiquismo na evolução hominal. É dessa inteligência que é determinado o impulso do sentir conforme o desejo central, desejo esse que mais não é senão o reflexo indutor da rotina mental na vida do homem.

Intensificando ainda mais essas forças impulsivas do desejo central, encontramos os estímulos sociais da atualidade delineando novos hábitos e atitudes, no fortalecimento de velhas bagagens morais da alma por meio do instinto de posse, degenerando em apego lamentável no rumo das apropriações desrespeitosas entre os homens.

Na convivência, a intromissão desse hábito de posse estabelece o ciúme, a inveja, a dependência e a dor em complexas relações. Façamos uma análise mais atenta.

O afeto, como expressão do sentimento humano, carreia, em muitos lances da experiência relacional, um conglomerado de desejos. Entre eles se encontram aqueles que nos mantém na retaguarda espiritual, carecendo de educação a fim de não fazer da vida interpessoal um colapso de energias, em circuitos delicados de conflitos e atitudes desajustadas do bem, provenientes de ligações malsucedidas e possessivas.

Devemos trabalhar para que todos os nossos consórcios de afeto, sejam com quem for, progridam sempre para a desvinculação, abstraindo-­se de elos de idolatria e intimidade ou desprezo e mágoa – posturas extremas no terreno dos sentimentos que conduzem aos excessos.

O afeto que temos é somente aquele que damos, porque o experimentamos nas nascentes do coração, irradiando de nós. E porque é nosso podemos dar, gratificando-nos mais cedê-­lo ao outro do que criar vínculos doentios por exigi-­lo de outrem, em aprisionamentos velados ou declarados. Em verdade, esse possuir afetivo é a nossa busca de completude, entretanto, a verdadeira complementaridade gera autonomia, liberdade e crescimento, enquanto a possessividade gera escravidão, desrespeito e desequilíbrio.

A afeição deve ser administrada na medida exata. Nem frieza, nem excessos. Isso solicita a disciplina sobre os desejos, que são, em boa parte, forças de propulsão nas fibras sensíveis da afetividade.

Quando se trata do tema transformação íntima na vitória sobre nós mesmos, estamos nos referindo, sobretudo, a esses impulsos-­matizes de sentimentos que são originados nas pulsões dos desejos. Graças aos desejos centrais que costumeiramente se assenhoreiam da nossa rotina mental, constata-­se uma separação entre pensar, sentir e fazer. Exemplo comum disso é o ideal de espiritualização que esposamos. Temos consciência da urgência de nos unirmos, amarmos, somar esforços, crescer e melhorar, porém, nem sempre é assim que sentimos em relação àquilo que já conhecemos. Fortes interferências no sentir causam solavancos e acidentes nos percursos da mudança interior. Falamos, pensamos e até agimos no bem em muitas ocasiões, mas nem sempre sentimos o bem que advogamos, estabelecendo “hiatos de afeto” no comprometimento com a causa, atraindo desmotivação, dúvida, preguiça, perturbação e ausência de identificação com as responsabilidades assumidas. Tudo isso coadjuvado por interferências de adversários espirituais, nos quadros da obsessão em variados níveis.

É assim que nossos sentimentos sofrem a carga psico­afetiva milenar dos desejos exclusivistas e inferiores, que ainda caracterizam a rotina induzida nos campos da mentalização.

E como instaurar matrizes novas no psiquismo de profundidade em favor da renovação de nossos sentimentos? Como renovar esse coração milenar pulsando independentemente da vontade?

Eis um empreendimento desafiante e progressivo. A solução está na aplicação de intenso regime disciplinar dos desejos, deixando de fazer o que gostaríamos e não devemos, e fazendo o que não gostaríamos, mas que é o dever.

Em outras palavras, saber desejar afinando impulsos com os alvitres conscienciais.

A disciplina dos desejos tem duas operações mentais principais, que são a contenção e a repetição, para que essa disciplina alcance o patamar de fator de educação emocional.

Na contenção é utilizado todo o potencial da vontade ativa e esclarecida, com a finalidade de assumir o controle sobre as fontes energéticas de teores primários e suscetíveis de causar danos aos novéis propósitos que acalentamos.

Já a repetição é a força que coopera na dinamização dos exercícios formadores de hábitos novos, com os quais desenvolvemos os valores divinos depositados na intimidade do ser desde a criação.

Contenção e repetição são movimentos mentais neutros, que adquirirão natureza e qualidade na dependência das cargas afetivas com as quais serão impregnadas, e nisso encontra-se a verdadeira transformação interior.

A contenção com revolta torna-­se repressão e neurose.

A repetição com descrença torna-­se desmotivação e rotina vazia.

A contenção com compreensão é vigilância e domínio.

A repetição com idealismo é hábito novo e crescimento.

A contenção amplia a vontade no controle sobre si mesmo.

A repetição plenifica, pela vivência, o desenvolvimento de habilidades e competências sobre as potências do ser.

Ambas, contenção e repetição, consolidam a disciplina como instrumento educacional dos desejos.

Como vemos, é sobremaneira decisiva a influência do desejar na caminhada evolutiva de todos nós.

Muitos corações encontram-­se guindados a estreitas formas de expressão afetiva em razão de suas compulsões, adquiridas na satisfação egocêntrica dos desejos ao longo de eras e mais eras, limitados por não se encontrarem aptos a conduzir os sentimentos com elevação moral, quase sempre atrelados à erotização e à irresponsabilidade nas emoções.

Outras vezes, os fatores complicadores surgem na infância, com os desejos não gratificados gerando carências de variada ordem na estrutura psicoemocional da criança. A necessidade infantil de afeto e atenção é um desejo natural e Divino para impulsionar o crescimento, contudo, quando não é convenientemente compensada, cria efeitos lamentáveis no seu desenvolvimento.

Vemos, assim, que significado tem os grupos solidificados nos valores evangélicos, notáveis por sua força moralizante, seja no lar ou na vida social, instigando novos desejos na nossa caminhada de aperfeiçoamento individual.

Grupos amigos, sinceros, autênticos e fraternos são buris disciplinadores das tendências menos felizes, arrimo psíquico para a superação das más emoções, estímulo ao elastecimento de novos hábitos e cooperação ante as lutas de contenção para quantos respiram ainda sob o regime doloroso desses limites provacionais nas leiras do sentimento, sobrecarregados de reflexos milenares a vencer.

Em ambientes assim, a contenção é menos penosa e a repetição tem o reforço contagiante dos propósitos maiores nutridos coletivamente.

E quanto aos grupamentos espíritas, que papel é reservado a eles perante tal realidade?

Precisamos muito de condições especiais para que tais dinâmicas da vida mental sejam dirigidas para aquisições consistentes e de bons resultados. As tarefas de amor e instrução das quais fazemos parte são ricos contributos nesse sentido. Enquanto estamos no trabalho espiritual, absorvemos do grupo de tarefeiros o somatório energético dos desejos elevados, o qual nos inspira nas diligências de amor conjugado às sublimes pulsões que vertem de tutores de além-­túmulo, sensibilizando as formas do psicoafetividade em direção a uma transcendência. Razão pela qual o amor ao próximo é reeducativo e tão modificador de nossos padrões de sentimento em relação à vida.

A propósito, alguns companheiros da lide sentem-­se invadidos por um estado de hipocrisia, quando em outros locais fora das tarefas de paz, por não conseguirem efetivar a manutenção de tais experiências envolventes da alma a altos graus de sensibilidade pelos outros. Isso ocorre, exatamente, porque as realizações espirituais são cercadas de condições especiais, quais fossem benfazejas enfermarias do espírito, na ministração de doses e tratamentos apropriados às imperiosas necessidades morais e emocionais que carreamos. Nesse trabalho dos grupos formadores do caráter e de nossa espiritualização, estaremos sempre em contato com o ser luz que almejamos para as realidades novas da existência, em contraposição às sombras acalentadas durante milênios. Essa fonte estimuladora é acréscimo de paz e serenidade ante as fortes reações cerceadoras do mundo íntimo, na busca de impedir-­vos a caminhada de erguimento moral e espiritual.

Os grupos conscientes, portanto, são verdadeiras escolas de novos sentimentos.

Por meio dos reflexos da conduta alheia que assimilamos, passamos a esculpir uma nova ordem de hábitos, renovando desejos e sublimando a sombra das tendências inferiores em propósitos dignificantes.

Mesmo que em tais ambiências venhamos a sentir e desejar o que não devemos, teremos arrimo psíquico e amizade sincera para compartilhar nossas necessidades, e só isso, muita vez, bastar­-nos­-á para ativar a vontade firme no domínio sobre nossos impulsos. Semelhante treinamento será nossa base de sustentação quando aferidos na rotina dos dias nos ambientes de provação, à qual todos nos encontramos guindados.

A vida afetiva é uma experiência que inclui desejos; burilemo-­los sem fugas, nem supervalorização, compreendendo as escolhas da evolução moralmente tortuosa que empreendemos em milênios de loucuras emocionais.

Nosso passado é também nosso patrimônio; jamais o destruiremos, apenas o transformaremos.

A primeira condição de transformação, porém, é entendê-­lo e aceitá-­lo, por isso mergulhemos na vida interior e descubramos, por meio de nossos sentimentos, aquilo que desejamos, trabalhando pelo autodescobrimento.

Conhecendo-­nos melhor, laboraremos com mais acerto o autoaperfeiçoamento. Enquanto isso, até decifrarmos com maior lucidez os códigos dos desejos, empenhemo-nos na contenção com amor a nós mesmos e na repetição perseverante dos anseios de libertação que nutrimos no dia a dia.

1. Pensamento e Vida, Francisco Cândido Xavier, pelo Espírito Emmanuel, FEB.

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