quarta-feira, 13 de julho de 2016

Ícones

Reforma Íntima Sem Martírio - Capítulo 24


"Entretanto, abandonando de todo a idolatria, os judeus desprezaram a lei moral para se aferrarem ao mais fácil: a prática do culto exterior."

O Evangelho Segundo o Espiritismo – Capítulo 18 - Item 2

A palavra integral significa por inteiro, total. Quando mencionamos o homem integral, estamos referindo ao ser na sua completude, a integração de todas as suas partes num todo.

O homem integral harmoniza os seus opostos e resgata a sua identidade original, já que ao longo da caminhada evolutiva estruturou uma imagem irreal do Eu Divino no espelho da vida mental que nomeamos como falso eu, com a qual temos caminhado há milênios no trajeto da evolução.

A vida é dialética, tem aparentes contradições porque consiste de opostos, que são, em verdade, complementares. Basta observar: noite e dia, vida e morte, verão e inverno, razão e intuição, bem e mal, claro e escuro, masculino e feminino. Sem os opostos não existe a vida.

Aprendemos, no entanto, a estabelecer divisões, uma visão cartesiana de partir o indivisível, estabelecendo, assim, a luta contra o que se convencionou considerar como sendo mau, não aceitável, feio e inutilizável. Nasce, então, o conflito, a perturbação, a cobrança.

Olhar as duas faces da moeda é uma grande sabedoria de vida. É uma atitude saudável a ser cultivada com cuidado no processo de transformação, que é a grande razão de nossa peregrinação pela Terra.

Luz e sombra são opostos. No entanto, uma depende da outra, assim como o passo da perna direita depende do passo da perna esquerda. Luz e sombra, perfeição e imperfeição são faces de uma mesma estrutura da alma, razão pela qual será impróprio adotar o conceito de eliminação para os assuntos da vida interior. Nunca eliminamos uma parte, mas a integramos.

Contudo, esse processo de integração gera um doloroso sentimento de perda, necessário ao progresso. Perde-se o velho para construir o novo. Na verdade, efetuamos uma reconstrução marcada por etapas desafiantes. Perde-­se a velha identidade e não se sabe como construir o que se deve ser agora, a nova identidade.

O conhecimento espírita é uma mola propulsora de semelhante operação da vida mental. Ao adquirir a noção da imortalidade, a alma sensibiliza-se para novas escaladas. Decide pela transformação, mas observa de pronto que mudar não é tarefa simples, que se concretiza de uma hora para outra. Assim, enquanto a criatura não constrói o homem novo e singular, único e incomparável que todos deveremos erguer na intimidade, ocorre um natural processo de imitação que o leva a fazer cópias de conduta do que lhe parece ser ideal. São os estereótipos espíritas – referências que adotamos, espontaneamente, para avaliar o proceder perante a nova visão de vida.

Por um tempo esse será o caminho natural da maioria dos candidatos à renovação de si mesmos. Carecem de referências externas que funcionam como boias indicadoras para sua elaboração interior dos conhecimentos novos. Um livro, um palestrante, um devotado seareiro da caridade ou mesmo um amigo espiritual poderão se tornar bússolas para o progresso pessoal, o que é muito natural.

Contudo, semelhante identificação natural pode adoecer em razão de vários fatores dolorosos para a alma em reforma íntima, ensejando que essa relação educativa com os referenciais caminhe para matizes diversos. Um dos mais comuns desvios nesse tema é a idolatria.

Idolatria é o excessivo entusiasmo e admiração por uma pessoa com a qual partilhamos ou não a convivência. São oradores, médiuns e trabalhadores que costumam se destacar pelas virtudes ou experiências, e que são tomados à conta de ícones, com os quais delineamos a noção pessoal de limite máximo ou modelo para os novos passos assumidos na caminhada espiritual.

Os ícones na história grega são as divindades que representam valores excelsos e santificados.

Sem considerar os naturais sentimentos de admiração e entusiasmo dirigidos a quem fez por merecê-­los, quase sempre nas causas dessa idolatria encontra-­se o mecanismo defensivo da mente, pelo qual é projetado no outro aquilo que gostaríamos de ser.

Dois graves problemas, entre os muitos, decorrem dessa relação idólatra: as exageradas expectativas e a prisão aos padrões.

As expectativas transferidas ao ícone carreiam desejos e anseios que se tornam âncoras de segurança para os problemas individuais. Caso a criatura se habitue ao conforto de escorar-­se psicologicamente no outro e fugir do seu esforço autoeducativo, passará ao terreno das ilusões, sentindo-­se e acreditando-­se tão virtuosa ou capaz quanto ele. Ocorre, então, uma absorção da identidade alheia. É como ser alguém com os valores do outro.

Quanto aos padrões, vamos verificar uma outra questão que tem trazido muitos desajustes: o hábito do dogmatismo, uma velha tendência humana de ouvir a palavra dos homens santificados pela hierarquia religiosa. Pessoas que se tornam carismáticas por sua natural forma de ser ou pelo valoroso desempenho doutrinário são, comumente, colocadas como astros ou missionários de grande envergadura, fazendo de seu proceder e de suas palavras, ideias conclusivas e definitivas sobre as mais diversas vivências da espiritualidade ou sobre quaisquer problemáticas humanas, como se possuíssem a visão integral de tais questões.

Quaisquer dessas vivências, expectativas elevadas ou criação de modelos podem nos trazer muita decepção e revolta. Somos todos aprendizes, uns com mais, outros com menos experiência. Todos, no entanto, sem exceção, como aprendizes do progresso e gestores do bem. Podemos sempre aprender algo com alguém, desde que tenhamos visão e predisposição à alteridade. O que hoje entendemos como sendo excepcional em alguém, amanhã poderá não ser tão útil para nossa percepção mutável e ascensional.

Por mais bem sucedida a reencarnação na melhoria espiritual, isso será apenas o primeiro passo de uma longa jornada. Então porque glórias fictícias com ídolos com pés de barro? Missionários e virtuosos? São muito raros na Terra. Para conhecê-los é muito fácil, nenhum deles aceita uma relação de idolatria, enquanto se verifica outro gênero de conduta com muitos que se julgam ou são julgados como tais.

Muitas vezes os "ídolos espíritas" que miramos não suportariam ter feridas as cordas dos interesses pessoais. Bastaria alguém cumprir o dever – ainda poucas vezes exercido – de questioná-­los com fraternidade para se rebelarem. Acostumou-se tanto a essa convenção em nossos ambientes de cristianismo redivivo, que já não se indaga ou filosofia, apenas se crê. Especialmente se determinadas fontes consagradas, sejam homens, instituições ou mesmo desencarnados, expedem ideias ou teorias, não se pesquisa, não se analisa com a prudência que manda o bom senso, apenas crê-­se. Não existem debates e, o que é mais lamentável, muitos corações incensados pela reverência excessiva não fazem nada para dela afastar os menos vividos, os quais terminam, em muitos casos, como pupilos mimados e protegidos que fazem escola...

Apesar da constatação desses malefícios, tudo isso faz parte da sequência histórica de nossas vidas. Quando refletimos sobre a questão, é no intuito de chamar a atenção de todos nós para os prejuízos de continuarmos cultivando semelhantes expressões de infantilidade emocional. Existe, de fato, uma velha tendência que nos acompanha, a qual podemos declinar como hábito da canonização psíquica.

Muitos ídolos adoram as bajulações e burburinhos em torno de seu nome. São folgas que não deveríamos buscar para nossa vida!

Os ídolos deveriam se educar e educar os outros para assumirem a condição de condutores, aqueles que lideram promovendo, libertando, e não fazendo coleção de admiradores para alimentar seu personalismo.

Como bons espíritas, apenas começamos os serviços de transformar a autoimagem de orgulho, profundamente cristalizada nos recessos da mente. Quando nos adornamos com qualidades e virtudes que imaginamos possuir, perdemos a oportunidade de ser nós mesmos, de eleger a autenticidade como nossa conduta, de construir o quanto antes a nova identidade que almejamos.

Inspiremo-­nos em nossas referências, todavia, não façamos deles ídolos. Ouçamo-­los, tiremos o proveito de suas conquistas, os respeitemo-nos e façamos tudo isso com equilíbrio, nem mais, nem menos.

Retifiquemos os nossos conceitos sobre lideranças no melhor proveito das oportunidades das sementeiras espíritas.

Líderes autênticos são dinamizadores incansáveis da criatividade e dos valores alheios. São estimuladores das singularidades humanas.

Por isso suas qualidades são empatia, confiança, capacidade de descobrir pendores.

Líderes que se integram na dinâmica de agentes da obra do Pai assumem a postura de serem livres, sem apego às suas vitórias ou realizações.

Sua alegria reside em ser útil e ver as obras sob sua tutela crescer em satisfação coletiva.

Dirigir, à luz das claridades espíritas, é valorizar o distinto, o diferente, e não apenas os semelhantes, atendendo sempre ao bem geral. Isso se chama conduta de alteridade.

Expoentes sempre surgirão. O que importa é o que faremos deles ou com eles. Evitemos, também, a substituição que tem se tornado frequente: não os deixemos para aferrarmos às práticas. A isso se referia Kardec quando disse: "Entretanto, abandonando de todo a idolatria, os judeus desprezaram a lei moral, para se aferrarem ao mais fácil: a prática do culto exterior."

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