sábado, 23 de julho de 2016

Fé e Singularidade

Reforma Íntima Sem Martírio - Capítulo 25


"A fé necessita de uma base, base que é a inteligência perfeita daquilo em que se deve crer. E, para crer, não basta ver; é preciso, sobretudo, compreender."

O Evangelho Segundo o Espiritismo – Capítulo 19 - Item 7


Quando deixamos de reciclar nosso mundo íntimo, é comum fixarmo­-nos em ideias e comportamentos que criam estilos invariáveis no modo de ser. É assim que muitas crenças, preconceitos, hábitos, condutas, chavões verbais e tradições são mantidos estagnados no tempo pela criatura em razão de sua forma de entendimento racional, decorrente de experiências que viveram ou da educação que receberam desde o berço. A esse conjunto de valores damos o nome de certezas emocionais, ou seja, referências de vida da alma no campo de sua movimentação, por meio das quais o ser cria, trabalha e respira absorvendo e expressando sua personalidade.

Considerando o estágio evolutivo da Terra, essas certezas do homem se encontram entorpecidas pelo materialismo em milênios de repetição, constituindo o fenômeno psicológico da permanência – a ilusão de querer manter para sempre em suas mãos aquilo que foi alvo de suas conquistas. Dessa forma, o individualismo sulcou traços morais e intelectuais marcantes que educaram o homem para o meu, em detrimento do nosso: meu filho, minha palestra, minha casa, minha família e até minha religião...

Esse fenômeno, do qual raríssimas vezes escapamos, conduziu muitos de nós, espíritas que declaramos possuir uma fé racional distante do dogmatismo, a uma postura de paralisia do raciocínio em muitas questões, as quais apelam para nossa urgente coragem de desapego e reconstrução pela oxigenação de nossas ideias e conceitos.

A esse respeito, entre as infinitas reciclagens a fazer, vejamos uma velha e costumeira forma de análise sobre a qual nos debruçamos, quase todos nós, nos temas da vida moral do espírita-­cristão em torno da mensagem de Jesus. Já perceberam, meus companheiros, com que frequência empregamos as frases "É falta de Evangelho no coração!", "Falam do Evangelho, mas fazem exatamente o contrário!", "Sem Evangelho não teremos a solução!", "Chegaram em má situação à vida espiritual porque não viveram o Evangelho!", "Falam de Evangelho mais não o aplicam!", "A ausência do Evangelho sentido levou aquele grupo à derrota!"

Não são poucas as vezes que, para explicar os motivos de fracasso ou de erro, assinala-­se que a causa se encontra na falta de viver os ensinos do Evangelho. Absolutamente não ousaríamos contestar tal questão, contudo, uma oportuna e desafiadora indagação precisa ser lançada a título de repensar caminhos e abrir ângulos de enriquecimento no tema. Poderíamos, por exemplo, indagar para debate e atualização de nossos pensamentos o seguinte: por qual motivo as criaturas não vivem o Evangelho?

De pronto surge uma resposta-­chavão: "Porque é muito difícil seguir os ensinos do Mestre!"; entretanto, para sermos sinceros conosco, essa resposta não explica nada palpavelmente. Então teríamos que nos aprofundar e questionar: "E por que é tão difícil seguir os ensinos da Boa Nova?"

Aqui deparamos com um dos pontos de convergência mais comuns nos atendimentos que realizamos no Hospital Esperança, chamado Exercício de Impermanência – uma atividade de readaptação com espíritas recém-­desencarnados que se fixaram em formas convencionais de pensar, e que cultivaram a ilusão de terem alcançado pleno domínio sobre os assuntos da vida espiritual, sendo convocados a reexaminar amplamente suas convicções e aspirações para além da morte física. Por sugestão do benfeitor Bezerra de Menezes, vamos compartilhar algo sobre semelhante iniciativa com os amigos encarnados, a fim de verificarem com antecedência uma particularidade das reciclagens a que somos convidados no país da verdade.

O Exercício de Impermanência é constituído de ciclos de debates entre coidealistas que já conseguiram se recuperar de momentos mais dolorosos, ou ainda com aqueles que, mesmo guardando relativo sossego interior adquirido na recém-finda reencarnação, carecem de reaver esse dinamismo mental de soltura nos conceitos e visões, para se integrarem com o divino mecanismo universal da transcendência e da mutação. A esse fenômeno da vida mental chamamos de desilusão ou o rompimento com as certezas-­amarras, colecionadas durante a passagem pela hipnose do corpo. Esse exercício tem etapas variadas, e entre elas o acesso do participante a informes muito preciosos e previamente selecionados por nossa equipe sobre suas precedentes existências, quando se cristalizaram no campo mental algumas matrizes emocionais que funcionam como piso para muitas das atuais ilusões-­certezas que carregam para a vida extrafísica.

Uma das primeiras e mais motivadoras perguntas nessa tarefa, destinada especialmente aos seguidores de Jesus, é exatamente essa a que referimos acima: por que não se vive o Evangelho? O que impede o homem de aplicar os ensinos de Jesus? Por que tem havido tanto discurso e pouca prática nos últimos dois mil anos da Terra?

É importante assinalar aos queridos amigos de ideal no corpo físico, muitos dos quais encontram-­se angustiados com sua infidelidade aos textos e roteiros do espiritismo-­cristão, que ninguém, em sã consciência, deixa de aplicar intencionalmente o que aprendeu e, se o faz, ainda assim há questões muito profundas na intimidade do ser que merecem uma análise madura e caridosa, antes de nomear essa atitude de hipocrisia ou má-fé. Resguardar-se nesse enfoque habitual, que destaca a origem de todos os nossos problemas e dores devido à falta da vivência evangélica, tem levado muitos corações ao simplismo, incentivando o esclarecimento superficial com cunho religiosista. Temos fundamentos bastante sensatos no Espiritismo para estabelecer pontes com todos os ramos da ciência e da filosofia, na dilatação de nosso olhar sobre essa indagação que poderão ampliar horizontes na construção da fé racional.

A edificação do homem novo reclama, sobretudo, lucidez intelectual sobre as causas de nossas atitudes. Para isso, somente abandonando visões fixas e ampliando perspectivas de compreensão.

Muitos corações inspirados pelas claridades do Espiritismo chegam por aqui como alunos que colaram, ou seja, viveram às expensas do que pensavam outros coidealistas ou seguiram os ditados mediúnicos com rigor na letra. Em face disso, deixaram de experimentar a mais notável vivência da alma enquanto na encarnados: a solidificação da fé raciocinante.

Dizemos fé raciocinante porque, ao se colocar que possuímos uma fé raciocinada, inferimos que as noções de doutrina, por si sós, são suficientes para gestá-­la automaticamente. Todavia, mesmo com tanta luz nos raciocínios haurida com a literatura e os recursos de ensino usados nos centros espíritas, o desenvolvimento da fé pensante não ocorre por osmose, e sim por etapas pertinentes à singularidade de cada criatura. Não existe fé raciocinada coletiva, conquanto nosso movimento libertador, em razão de engessamento filosófico e tendências psicológicas dogmáticas, tenha se aferrado demasiadamente a padrões e convenções que estrangulam a criatividade e a liberdade de pensar.

Fé raciocinada é um fenômeno psicológico e emocional construído com base no desejo autêntico e perseverante de compreender o que nos cerca – conquista somente possível por meio da renovação do entendimento e da forma de sentir a vida. É conquista individual, construção íntima e pessoal, e não pode ser considerada adesão automática a princípios religiosos ou ideias que nos parecem aceitáveis e convincentes. E quanto mais maleabilidade intelectiva, mais chances de alcançarmos a fé que compreende e liberta.

Fomos educados para obedecer sem pensar, aceitar sem questionar. A cultura humana não é rica na arte de estimular a pensar e filosofar, debater e reinventar. A fé racional somente será lograda quando aprendermos a pensar a moral, a pensar sobre si mesmo, a debater sobre as vivências interiores com espírito de liberdade, distante da censura e das recriminações, com coragem para se distanciar de estereótipos. A chamada conscientização é uma conquista intransferível, individual, somente possível quando permitimos a nós mesmos analisar nossa singularidade com amor e ternura, sem punições e culpas. Não existe melhora íntima concreta sem trilharmos essa vivência emocional.

A educação na Terra passa por grandes transformações. Penetramos a era da curiosidade, queremos entender a vida. Queremos saber quem somos...

A maior conquista da etapa hominal é a capacidade de raciocinar, no entanto, se essa habilidade não for utilizada para a aquisição gradativa da consciência de si mesmo, estagnaremos no patamar de colecionares de certezas que nos foram transmitidas, esbanjando muita informação e carentes de transformação. A boa nova espírita tem que saltar da ilha da inteligência e integrar o reino do coração. É necessário abolir as fantasias do que deveríamos ser e nos aplicar a sentir o que somos de fato, laborar com nosso eu real.

Nossa tarefa primordial, portanto, é recriar o conhecimento espírita adequando-­o à nossa singularidade, sem com isso querer criar novos padrões coletivos. Respeitar os ensinos gerais, mas desvendar os nossos mistérios interiores, únicos no Universo, eis o desafio da renovação espiritual.

É tão penoso viver o Evangelho porque, em verdade, é penoso o contato com nosso eu real, para o qual toda a mensagem de Jesus é dirigida. E para evitar esse contato, a mente capacitou-­se a gerir as ilusões em milênios de experimentações, sendo muitas delas um mecanismo de fuga e proteção para nos isentar do contato doloroso com a Verdade sobre nós mesmos.

Existe um simplismo prejudicial quando nos acostumamos a afirmativas de periferia. Lancemo-­nos a essa intrigante questão sobre quais são os motivos pessoais de não vivermos o Evangelho e emergirá para a consciência todo um manancial de reflexões, com as quais haveremos de trabalhar em favor de nossa maturidade.

A bula universal da palavra cristã para cada qual terá dosagem e componentes específicos, conforme o estágio espiritual em que se encontre, não sendo oportuno copiar receitas. A singularidade é fundamento determinante da forma e da intensidade com que nos apropriaremos individualmente da vivência cristã. Nessa perspectiva incluem-­se as razões pelas quais nem sempre fazemos aquilo que pregamos.

Não se vive o Evangelho, entre outras infinitas questões, porque não se tem trabalhado ainda nos grupamentos humanos, inclusive os espíritas, um método que permita esse autoencontro em bases educativas para a alma em aprendizado. O autoconhecimento solicita orientação segura e objetivos nobres para não se desvirtuar em autoflagelação e dor, normas severas e reprimendas – mecanismos típicos do religiosismo que se destina à massificação, com total descrédito à exuberância dos valores individuais que deveriam florir em nossos caminhos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário