sábado, 27 de junho de 2020

Silenciosa Expiação

Livro: Mereça Ser Feliz
Autora Espiritual: Ermance Dufaux

Capítulo 24


"Fazer maior soma de bem do que de mal constitui a melhor expiação".

O Livro dos Espíritos – Questão 770 A


Todo esforço de transformação interior gera reações penosas no controle dos impulsos do automatismo. Renovar é uma operação mental de contrariar a rotina, o habitual, gerando incômodos e dores variadas. São as dores psíquicas, dores íntimas. Efeitos naturais da ação transformadora, constituindo verdadeira expiação, silenciosa expiação.

O vulcão é o fenômeno natural que melhor recorda esse estado de convulsões interiores na criatura em reforma espiritual. Um estado de agitação nas “lavas mentais incandescentes” que queimam as ervas daninhas do mal no calor das altas temperaturas do conflito e da dor.

A mudança interior significa o desapego de símbolos, mitos, costumes, ações e emoções. Essa ação leva a sentimentos de perda que se assemelham a verdadeiras “amputações psíquicas e afetivas”, causando, inicialmente, muita insatisfação, insegurança e revolta. Naturalmente, no caso da transformação à luz das propostas espíritas, a criatura é convidada a uma “perda do homem velho” para fazer a “aquisição do homem novo”, jamais permanecendo sem ideal, sem vida. Essa mudança, aliás, tem como único propósito nossa adesão consciente e espontânea à verdadeira fonte de vida e felicidade: a harmonia com o Pai que nos criou.

Certamente alguns quadros mentais, incluindo doenças, podem conjugar-se aos efeitos do processo de reforma íntima, agravando ainda mais os episódios de sofrimento daquele que optou por tomar conta de seu patrimônio espiritual. Entre esses quadros vamos encontrar as questões traumáticas da infância, o estresse, as depressões, as influências espirituais, as recordações do passado em forma de tendências e ideias. Todavia, independentemente da natureza patológica da dor, chamemos de "pressões psíquicas" essas dores aparentemente inexplicáveis e catalogadas por muitos psiquiatras humanos como desajustamento ou fragmentação da personalidade.

Particularmente, os portadores de sensibilidade mediúnica percebem mais facilmente tais fenômenos da vida mental, sofrendo com mais intensidade esse doloroso "expurgo vibratório" sob intenso "estado de pressão", conquanto sua aptidão também permite exonerar níveis mais volumosos dessa "matéria deletéria" de seu cosmo orgânico e perispiritual.

Destaquemos alguns sintomas típicos desse mecanismo sutil do mundo mental que ocasiona a dor-evolução:

- Estado íntimo de desconforto e desassossego quase permanente.

- Sensação de perda de controle sobre a existência.

- Preocupação inútil sem causas justificáveis.

- Desordem nos raciocínios.

- Conflitos afetivos sem participação da vontade.

- Tendências acentuadas para a culpa.

- Processos físicos de drenagem de energias.

- Ansiedade de origem desconhecida.

- Medos incontroláveis de situações irreais.

- Irritações sem motivos claros.

- Angústia perante o porvir com aflição e sofrimento por antecipação.

- Excesso de imaginação ante fatos corriqueiros da vida.

- Barreiras emocionais na relação interpessoal.

Perda do controle de si, causando um desespero mudo na vida interior! Um desespero silencioso e cansativo! Nisso se resume esses sintomas.

A reforma íntima é um período de transição em que deixamos de ser "donos" daquilo que não nos convém para aprendermos a nos apropriar daquilo que sempre foi nosso, mas nunca optamos por tomar conta. Nessa transição, o ser sente-se ostensivamente inseguro e infeliz.

É um sofrimento muito sutil, que dificulta para a maioria das criaturas uma identificação plena do que ocorre consigo mesmo. Somente as incursões constantes e perseverantes na auto-análise ensejarão, pouco a pouco, o discernimento e a constatação de semelhante prova da vida íntima. É tão sutil que muitos corações “acostumam-se” com os traços expiatórios descritos, supondo serem imperfeições integrantes da sua personalidade, quando, em verdade, são reflexos e efeitos que podem perfeitamente ser educados e extirpados no tempo, utilizando-se adequadamente as forças íntimas que dormitam à espera da vontade ativa e consciente.

A intensidade dessa expiação tomará graus diversos, conforme os compromissos e qualidades de cada individualidade, nunca ultrapassando o limite das forças de resistência e de sua capacidade de superar. Para uns será um período curto e inesquecível. Para outros terá um prolongamento em razão de sua rebeldia em aceitar os convites de renovação a que é chamado. Outros tantos, mesmo aceitando os alvitres da reforma, necessitam de um esticamento face ao volume de “matéria mental mórbida”, acumulada em milênios de repetição no erro, que vai escoando lentamente de seu psiquismo.

Passada a etapa de maior conflito, vem a calmaria, a condição mental de paz e tranquilidade para mais amplos voos de ascensão. Lavrada a terra mental é hora da semeadura produtiva. Passada a dor é tempo de maiores responsabilidades no trabalho. Essa exoneração é apenas o começo de uma longa caminhada, e sem ela o homem não se habilita aos requisitos para assumir com proveito as oportunidades na marcha do progresso, ante a coletividade na qual está inserido. Primeiro cuida de si, mesmo estando servindo ao próximo, posteriormente terá mais êxito e experiência para penetrar no desconhecido mundo do outro e auxiliar-lhe com o consolo e o roteiro, fazendo da caridade um ato de libertação e amor.

Ao descrevermos a silenciosa expiação, objetivamos esclarecer, a quantos estejam buscando os novos ideais espirituais de crescimento, que algumas disciplinas tornam-se insubstituíveis e urgentes, a fim de amenizar o ardor da batalha interior. Queremos recordar a menosprezada terapêutica da prece. Menosprezada, porque não é usada com a utilidade e proveito que se poderia, inclusive pelos próprios espíritas que possuem largos  conhecimentos sobre seu valor.


A prece é um bombardeio de luz rompendo o campo tóxico da aura e alcançando o corpo espiritual nesse caso das expiações interiores. É uma limpeza provocada por impulsos “mento-eletromagnéticos” na corrente dos chacras e dos nadis (1), restaurando o equilíbrio e causando uma agradável sensação de sossego na intimidade. Alívio, esse é o melhor efeito da oração. Mas a prece também descortina forças sublimes no superconsciente, energias ainda ignoradas por nós e que são capazes de tonificar o corpo e a alma.  Além disso, ela recolhe no universo do fluido cósmico  a "matéria rarefeita" que resulta do pensamento dos espíritos superiores, armazenando farto suprimento de "flocos de saúde e vitalidade".


O problema que costuma ocorrer na aplicação da terapia da oração é que o doente não se lembra de tomar a medicação na hora exata em que dela mais necessita. E não podemos deixar de assinalar que, no caso das "dores psíquicas", toda dose adicional será sempre um benefício a mais na preservação da qualidade de vida do paciente. É uma questão de disciplina e cumplicidade com o bem pessoal.

Excelente abordagem das Vozes da Verdade: "Fazer maior soma de bem do que de mal constitui a melhor expiação".

O simples fato de desejar o bem dói muito, porque nosso desejo é sincero. Entretanto, entre o desejo e nosso passado existe um "monturo" de imperfeições a ser removido com muito trabalho. Um "monturo" que apresenta todas as condições insalubres para uma vida saudável e equilibrada, mas somente quem o construiu poderá transformá-lo em terra rica para o plantio sublime. Transformar o lixo em adubo fertilizante, essa é a tarefa.

Para nós que nos afastamos da Lei Divina será sempre assim: o bem tem um preço alto na conquista da felicidade!

Apesar disso, jamais desistamos de buscá-lo com muita humildade no reconhecimento de nossa verdadeira condição. Deus não faltará com o indispensável para esse projeto de ser feliz, beneficiando-nos sempre com o que merecemos ou precisamos.

1. Nadis: Canais de condução de energia no corpo vital, "nervos sutis". Também conhecidos como meridianos, são como pequenos chacras.

sábado, 20 de junho de 2020

Fuga do Mundo

Livro: Mereça Ser Feliz
Autora Espiritual: Ermance Dufaux

Capítulo 23

"Não julgueis, todavia, que, exortando-vos incessantemente à prece e à evocação mental, pretendamos vivais uma vida mística, que vos conserve fora das leis da sociedade onde estais condenados a viver. Não; vivei com os homens da vossa época, como devem viver os homens. Sacrificai às necessidades, mesmo às frivolidades do dia, mas sacrificai com um sentimento de pureza que as possa santificar."

O Evangelho Segundo o Espiritismo - Capítulo 17 - Item 10

Fuga do mundo! Fenômeno comportamental que vem avassalando alguns companheiros beneficiados com o conhecimento espírita. Sua característica mais marcante é a de querer conviver somente entre companheiros de idealismo, com extrema limitação para entender perfis éticos e sociais que destoem da "performance doutrinária-evangélica".

Afora os conflitos naturais, sofridos em razão da necessária adaptação do homem depois que toma contato com as diretrizes espirituais,podemos classificar essa fuga do mundo, quando se torna persistente e sistemática, como verdadeira inconformação com as vicissitudes corporais.

Cataloguemos tal episódio da vida mental de "síndrome de além túmulo" pelo motivo de ser a vida espiritual o "objeto de desejo" de semelhantes casos.

"síndrome de além túmulo" pode ser classificada como um comportamento neurótico de transferir para um "mundo ideal" as esperanças e expectativas do dia a dia no mundo real. É uma fuga, uma transferência como mecanismo de defesa de questões íntimas não resolvidas e dolorosas, resultantes principalmente de frustrações e insatisfações para o homem encarnado. Faz-se algo hoje pensando em colher na imortalidade, no futuro, sem nutrir-se dos benefícios dessa ação no hoje e no agora, vivendo um mundo imaginário “desconectado” dos sentimentos. Seu traço principal é a negação dos prazeres humanos com os quais seu portador carrega sofríveis desajustes. Apresenta-se esse conflito interior com variados assuntos como a riqueza, a beleza, a inteligência, a virtude e outros temas existenciais; por isso é comum projetar julgamentos estereotipados e repreensivos à conduta alheia, exatamente naqueles embates que a criatura carrega.


Doentio nesse lance da vida mental é a suposição que se elabora para si mesmo sobre os futuros frutos que obterá na vida dos espíritos, simplesmente pelo fato de “aguentar resignadamente” as dores pelas quais vêm passando, quando tais dores nesse tipo de vivência são desajustes de inaceitação e rebeldia, provas morais adicionais e distante das provas reais, ante os quadros de aferição terrena a que todo espírito reencarnado está submetido com mais ou menos intensidade.


O conhecimento espírita para agregar valor espiritualizante precisa ser contextualizado, ou seja, adequado à vivência prática de quem o possui, respeitando sua individualidade, seus problemas e suas qualidades. O acúmulo de informações, sem a devida renovação da experiência de viver e conviver, poderá, em algumas situações, servir ao interesse pessoal na sutil fuga dos deveres que a Terra “impõe” como planeta expiatório.

Abençoada é a literatura espírita, mas a cultura humana, que é construída a partir das informações e experiências entre os homens, transportou com certo exagero as avaliações de boa parte dos adeptos espíritas para o mundo espiritual, as existências passadas e a influência dos desencarnados. É a velha dicotomia passado, presente e futuro no campo da fragmentação da “realidade mental”.

Verdadeiramente, o presente é a nossa realidade, contudo o atavismo do reino dos céus, ressumando do passado conjugado às esperanças futuras na vida extrafísica, determina ampla soma de desencontros com as desconfortáveis experiências que todos temos que passar para aquilatar valores e vencer imperfeições.

Essa “síndrome”, portanto, gerou uma cultura de supervalorização das questões do mundo extrafísico trazendo como consequência a negação da relação com o mundo físico.

Três são os resultados éticos e emocionais de semelhante postura
mental:

- A transferência de responsabilidade sobre os insucessos pessoais, imputada a espíritos e carmas.

- Negação do passado da atual existência pela camuflagem de medos, frustrações, desejos, culpas e sentimentos; são as máscaras emocionais.

- Foco dos pensamentos centrado no tipo de relações sociais da colônias de além túmulo contidas na literatura espiritista.

Ante essa cruel vivência da vida interior, torna-se escassa a auto-estima, enfraquece-se o desejo de progresso e espera-se resultados ótimos na vida além túmulo, pelo simples fato de apenas pertencer à fileiras de serviço ou frequência das casas doutrinárias, como se assim todos os problemas estivessem solucionados. E quando encontra decepções e surpresas desagradáveis na própria convivência com os companheiros de tarefa, melindra-se ostensivamente, afogando-se em mágoas e deserções irrefletidas, supondo que "novos carmas" surgiram para elevá-lo ainda mais na escala de sua suposta ascensão!

Muita oração e paciência requisitam tais corações em nossas fileiras. São doentes graves e podem carecer de tratamentos especializados dos ramos da psique, quando essas desarmonias são persistentes e progressivas.

Evita, desse modo, fugir de teu mundo. Não espere um grupo de cooperadores Celestes na esfera de tuas ações espíritas, relegando o trabalho educativo de ti mesmo ao preço da insipiência e descuidos alheios.

Os dirigentes conscientes e comprometidos ensejem um ambiente doutrinário que conecte o tarefeiro com seu mundo, interagindo sempre o centro espírita com a sociedade e seus problemas, fortalecendo seus irmãos para viverem no mundo sem serem do mundo, e para serem espíritas sem desejarem ser anjos"...

Vemos assim mais uma faceta sutil das batalhas do espírita na Terra que apela com urgência para a arregimentação dos grupos espíritas mais humanos e acolhedores; grupos que saibam estender mãos e coração a essas desarmonias provacionais, tonificando o necessitado de forças novas e soluções realistas e libertadoras; grupos que tenham competência de demonstrar socorro e rota a quem lhes busca, independentemente da natureza de sua problemática, de educar para entender que cada criatura é o arquiteto de seu destino, o construtor de sua felicidade, apontando-lhe o estudo e o trabalho indispensáveis para seu reajustamento ante as dores do mundo.

Indispensável constatar que semelhantes grupos só podem ser construídos se seus condutores forem criaturas que vivam o mundo da realidade física com coerência e possuam respostas para os conflitos humanos, porque as buscaram para superar suas próprias lutas íntimas. O bom dirigente é aquele que passa experiência e expõe seus caminhos sem, contudo, acreditar que eles sejam os melhores ou que vão servir para todos.

Certamente, conquistando a harmonização afetiva consigo mesmo, o homem conseguirá sentir com mais exatidão e realismo a vida que o cerca, seu pensamento refletirá a nobreza dos seus desejos, as atitudes falarão de sua compostura moral e, então, ele assumirá suas responsabilidades com mais empenho e dedicação, aprendendo a amar a todos e a tudo como são e estão, por sua vez prosseguindo seu caminho de compromissos com a consciência, inderrogavelmente, praticando o bem sem cessar, o que nos faz recordar a sábia alocução entre Allan Kardec e os Espíritos Superiores, assim descrita na questão 642 de O Livro dos Espíritos:

“Para agradar a Deus e assegurar a sua posição futura, bastará que o homem não pratique o mal?”

“Não; cumpre-lhe fazer o bem no limite de suas forças, porquanto responderá por todo mal que haja resultado de não haver praticado o bem.”

§§§§§

Companheiros da jornada carnal,

a Terra é uma universidade prodigiosa para nossas necessidades. Fugir de contribuir com o progresso e o crescimento desse planeta é ingratidão e inconsciência. Para almas em nosso estágio, nós que já recusamos o mal, mas ainda temos o desejo do bem embrionário, ela é farta despenseira de bênçãos.

Aprendamos a amar as leiras terrenas.

Conquanto os conflitos que carregamos, mesmo com os anseios não satisfeitos, inconformados com as lutas e com tendências para a “reclusão opcional”, sigamos sempre o ideal da melhora, cultivando resignação ativa sem acomodar, ampliando os sonhos sem deixar de trabalhar e esforçar. A desistência ou a fuga fazem-nos jornadeiros insensatos e desculpistas, covardes e indiferentes à riqueza da vida.

A insatisfação crônica não será remediada com vida ascética e puritanismo, porém com nobre devoção ao dever, levando-nos, paulatinamente, a redescobrir a alegria de viver e o fulgor glorioso da paz através dos sacrifícios em equilibrar-se, enfrentando nosso infeliz passado onde se encontram as causas reais das dores que nos atormentam.

Vigiemos a conduta para não transportarmo-nos para as compensações ilusórias das viciações ou na aceitação desonrosa de "vender a alma" a novas formas de prazer, nas derrapagens morais da corrupção no ganho fácil.

E jamais esqueçamos, em tempo algum, que a solução definitiva da "síndrome de além túmulo" será aprender a amar a oportunidade do renascimento, por mais escassez e dureza nas provações, fazendo o melhor que pudermos e com muita fé na abundância da misericórdia de Deus...

sexta-feira, 12 de junho de 2020

Desafio Afetivo

Livro: Mereça Ser Feliz
Autora Espiritual: Ermance Dufaux

Capítulo 22

"Podem dois seres, que se conheceram e estimaram, encontrar-se noutra existência corporal e reconhecer-se?"

"Reconhecer-se, não. Podem, porém, sentir-se atraídos um para o outro. E, frequentemente, diversa não é a causa de íntimas ligações fundadas em sincera afeição. Um do outro dois seres se aproximam devido a circunstâncias aparentemente fortuitas, mas que na realidade resultam da atração de dois Espíritos, que se buscam reciprocamente entre a multidão."

O Livro dos Espíritos - Questão 386

Ímpetos de afeto repentinos com essa ou aquela pessoa irromperão inúmeras vezes face aos complexos automatismos pertinentes ao mundo do coração, contudo, constituirá isso motivo para fuga e temor? Certamente que não, pois que, em verdade, a vida nessas ocasiões conclama-nos a mais amplos voos na busca da maturidade no difícil aprendizado de transformar paixões em valores de libertação da alma, quais sejam a fraternidade, a alegria de conviver, a felicidade de amar sem possuir e depender.

Apreciar a beleza, gostar da companhia, exaltar as qualidades ou surpreender-se com a cultura são reações naturais ante aqueles que apreciamos. O cuidado nesse assunto deve situar-se nos sentimentos que permitimos ebulir a partir desses encantamentos passageiros.

Nas experiências da afeição assenhoreia-se, frequentemente, um fenômeno de negação dos sentimentos, adornando-se de atitudes de aparente equilíbrio, sendo que, intimamente, em muitos lances, a criatura está amargando dolorosa prova no silêncio do mundo afetivo "amando perdidamente" alguém, impingindo impiedoso freio às atrações, às fantasias e aos pensamentos. Repressão, porém, não basta para educar.

Uma das maiores fontes da infelicidade humana é não entender a linguagem dos sentimentos. As gerações do alvorecer do terceiro milênio sabem comunicar com países distantes em línguas diversas, mas não conseguem decodificar as mensagens de seu próprio mundo emocional, mantendo-se reféns de muitos processos que lhes imputam dolorosas vivências.

No terreno da vida afetiva, observa-se na atualidade um drama de proporções gigantescas que tem dilacerado almas honestas através de silenciosa expiação. Particularmente o coração feminino, graças à maior sensibilidade, tem resvalado para esse pântano de dor e desespero. Trata-se da prova afetiva. A criatura que devotou seu amor a alguém em legítima entrega e fidelidade vê-se, de hora para outra, sem qualquer explicação justificável pela lógica, com fortes apelos de atração por alguém fora da união esponsalícia.

Inicialmente, tomada por agradável encantamento, permite-se fruir a fantasia e a emoção, para depois, em instante de reflexão e siso, tomar-se de intensa culpa. Posteriormente vem a fase do pânico e do desespero, por analisar a situação em pauta como sendo o fim de todo um investimento de esforço e devoção na vida familiar. Acredita que tenha “acabado o amor”. Sofre em silêncio e sem coragem de dividir seus sentimentos com alguém. Imagina-se apaixonada por outra pessoa e sente tremenda hipocrisia. Verdadeiro desafio afetivo prenuncia uma etapa de experiências repleta de insegurança e tristeza. Novamente na presença da pessoa por quem sentiu essa repentina paixão, ficará desconcertada e completamente à mercê das ocorrências. Se o outro for alguém na mesma situação ou perceber-lhe o estado interior, a prova é ainda mais agravada.

Os dias prosseguem e a falta de habilidade em lidar com o mundo do afeto instala um quadro de solidão emocional, tombando para múltiplas manifestações que poderão chegar ao ciúme, irritação, depressão e revolta. Adversários espirituais cruéis na espreita poderão incendiar-lhe os costumes e promover a desordem do comportamento.

Essa leitura errônea da linguagem dos sentimentos tem provocado infelizes dramas passionais na humanidade. A deseducação para o trato com a vida emocional é, sem dúvida, uma tragédia social.

Depois de milênios na poligamia, o sistema afetivo sofreu agressões consideráveis que criaram lesões e feridas profundas. Traumas e conflitos, vingança e decepções, mágoas e traições, quase sempre, foram as escolhas da maioria dos homens nas experiências da vida a dois em regime de infidelidade, posse e dependência.

Portanto, é concebível que na atual vivência conjugal alguém sinta em dado instante algum tipo de atração não conveniente ou algum impulso repentino de aproximação e permuta. Isso em absoluto significa que o amor votado a alguém tenha acabado ou que se esteja em traição. O caleidoscópio dos sentimentos é algo imprevisível e regido por complexos mecanismos da mente, colocando a criatura diante de si messa. E sempre que necessário, tal mecanismo convida a retificações no mundo interior, à educação do afeto de profundidade, cujas nascentes encontram-se nas vidas pregressas. Emerge então, ao consciente, forças ignoradas da criatura apelando para a sublimação através dos corretivos da disciplina, da oração e da conduta reta.

Não é o fim de nada. Pelo contrário, é o início de novas lições. Decerto haverá incômodos e aflição, mas essa é a razão dos estágios depurativos na matéria, melhoria pelo autoconhecimento.

Outras causas adicionais ou coadjuvantes desse processo educativo da afetividade são os reencontros com almas com as quais já se partilhou instantes de ternura e permuta erótica, ou simplesmente a complementação magnética no terreno das expectativas que se carrega na escala dos anseios ocultos.

Pouco importando as origens, é preciso a quem passe por esse teste afetivo muita sinceridade consigo mesmo, conhecer melhor sua vida sentimental, buscar confidenciar seu drama com quem tenha maturidade e êxito no casamento e procurar rogar a Deus maior compreensão acerca do ignorado mundo do coração.

Alguns casos mais graves, havendo persistência e surgindo ímpetos incontroláveis, será imperativo o auxílio profissional, a tarefa de atendimento fraternal nas casas espíritas e, possivelmente, o socorro mediúnico com integração mais responsável junto às frentes de serviço ao próximo.

Devemos ainda acrescer que nem sempre essas fortes atrações representam passagens malsucedidas em vidas anteriores, podendo mesmo serem velhos e bons amigos que retornam aos caminhos atuais e por quem se tenha nutrido sincera e saudosa afeição, embora, mesmo objetivando o aprimoramento, ainda assim, poderá confundir suas reações emotivas filtradas conforme as viciações adquiridas no tempo, tendendo a entreter laços menos nobres com quem lhes causa tanto bem-estar nos roteiros da afinidade. Saber o que se passa conosco nessas ocasiões será um avanço em termos espirituais, permitindo-nos situar na postura adequada de proximidade sem intimidade.

Da mesma forma, toda vez que surjam desafeições, antipatias, desagrados, desgostos, repulsa e rejeição em relação a alguém, devemos mergulhar nas águas abissais do mar subconsciente e buscar conhecer as “espécies” viventes nessa imensidão de valores e imperfeições, da qual todos somos portadores. Nesse universo ignorado surgirá, certamente, a pérola reluzente da felicidade que tanto desejamos em meio às ostras de nossas dores de cada dia.

sábado, 6 de junho de 2020

Puritanismo do Espírita

Livro: Mereça Ser Feliz
Autora Espiritual: Ermance Dufaux

Capítulo 21

"O objetivo da religião é conduzir a Deus o homem. Ora, este não chega à Deus senão quando se torna perfeito. Logo, toda religião que não torna melhor o homem, não alcança o seu objetivo. Toda aquela em que o homem julgue poder apoiar-se para fazer o mal, ou é falsa, ou está falseada em seu princípio. Tal o resultado que dão as em que a forma sobreleva ao fundo. Nula é a crença na eficácia dos sinais exteriores, se não obsta a que se cometam assassínios, adultérios, espoliações, que se levantem calúnias, que se causem danos ao próximo, seja no que for. Semelhantes religiões fazem supersticiosos, hipócritas, fanáticos; não, porém, homens de bem".

"Não basta se tenham as aparências da pureza; acima de tudo, é preciso ter a do coração."

O Evangelho Segundo o Espiritismo - Capítulo 8 - Item 10

O puritanismo de alguns espíritas, nada mais é que a vivência exterior do espiritismo, a criação de "protótipos de conduta" através de hábitos e costumes padronizados do tipo "espírita faz isso ou não faz aquilo". 

O puritano é aquele que tem "códigos de identificação exterior", verdadeiros ritos e chavões doutrinários que esquecem automaticamente tão logo se afastem dos locais de pregação e devoção.

Necessariamente o puritano não é um hipócrita, pode estar apenas vivendo um estágio de elaboração íntima na sua melhoria pessoal e necessita de "escoras" e "imitações" para, pouco a pouco,  internalizar o que ainda permanece somente na órbita de seus pensamentos sem atingir seu modo de sentir. O problema surge quando há uma preferência por fazer amostragens de conduta espírita, teatralizando comportamentos e discursos com a única intenção de impressionar ou convencer, permanecendo nessa atitude anos após anos sem autenticidade e sinceridade.

A vivência real dos postulados espíritas é íntima no reino dos pensamentos e das tendências, dos sentimentos e dos ideais.

Ser puro é uma questão íntima. Foi Jesus quem disse que o Reino de Deus não viria com aparências exteriores (1). Ele também disse que os puros de coração veriam a Deus (2).

Ser puro é a aspiração evolutiva mais elevada que se pode conceber em nosso estágio de vivências. O puritanismo, ao contrário, é algo exterior, uma “fachada” da atitude que não corresponde a valores autênticos. O rigorismo, o ascetismo, o moralismo são algumas de suas manifestações. No excesso de rigor aplicado ao  comportamento próprio e das demais pessoas, é o radicalismo; na recriminação sistemática às questões mundanas é o ascetismo; na adoção constante de procedimentos artificiais aceitos como linhas comportamentais de um determinado grupo, é o moralismo.

Entre convivas espíritas são as ações e costumes tidos como coerentes com aquilo que a comunidade elegeu no seu padrão, criando estereótipos de “religiosos Kardecistas”. Algo muito melindroso essa questão do estereótipo! Primeiramente porque pode constituir apenas um comportamento exterior, e depois porque incentiva exclusões e sectarismo para quem não esteja rigidamente de acordo com os perfis socialmente aceitos pela  comunidade doutrinária.

O princípio das boas relações com o outro é estar bem consigo e o puritanismo é indício de uma má relação com a vida interior. Quase sempre as atitudes puritanas escondem imperfeições com as quais não se deseja fazer o auto-encontro. Como esse enfrentamento é difícil, através de mecanismos de defesa faz-se uma transferência para o outro, nascendo a postura que denota moralismo ou desajuste com o mundo externo.

Esse moralismo e desajuste podem ser percebidos em ações de recriminação, preconceito e reclusão, inclusive em nossos círculos espiritistas. Evidentemente, o homem agraciado com a luz do conhecimento espírita deverá ter um perfil adequado às propostas morais e sociais que o Espiritismo concita, conquanto devamos reconhecer que a má interpretação desse conhecimento enseja a presença de ostensivo desvirtuamento acerca daquilo que seja ou não essencial e educativo em matéria de conduta espírita.

Algumas temáticas pertinentes à vida no corpo físico demonstram com realismo a tese que estamos defendendo. Basta que façamos algumas interrogações e deixemos o debate ao sabor doa amigos espíritas que se encontram na experiência física: Como tem sido o relacionamento com o dinheiro? Qual tem sido o posicionamento diante das questões da sensualidade e do afeto? Que se tem realizado no campo político social? Que contribuições são oferecidas na comunidade do bairro? Como andam as relações com os vizinhos que partilham ritmos de vida diversos? Que contributos se tem oferecido ao progresso do ambiente profissional de sua atuação? Os impostos são pagos com honestidade? Que cuidados são oferecidos ao corpo físico relativamente à sua beleza e saúde? Que ambientes e hábitos são escolhidos para diversão?

Notem que as indagações são bem pertinentes à sociedade terrena, a escola dos reencarnados. A razão desse enfoque é a de aferir a relação íntima com as questões do vosso mundo, porque a relação perturbada com essas e outras questões pode ensejar um puritanismo, um frágil e artificial relacionamento com as vivências necessárias ao progresso do espírito no mundo corporal.

Puritanismo é passar-se por puro sem o ser.

A pureza na Terra é relativa ao grau de aperfeiçoamento do estágio ainda inferior em que se encontra.

Os grandes homens puros da humanidade viveram no mundo sem ser do mundo, eis a nossa reflexão.

A soma do puritanismo de vários espíritas  redunda em fazer do centro espírita ou do movimento uma "ilha paradisíaca" distante das problemáticas da sociedade, criando uma reclusão obstinada e confortável. Porém, espera-se o oposto de todos os homens laureados com a espiritualização de si mesmos. Espera-se aproximá-los o quanto possível, de forma justa e útil, dos assuntos humanos, cooperando com a purificação paulatina da humanidade. Não serão "modelos puritanos", inconsistentes e conversionistas, que promoverão a regeneração. Referimo-nos à participação pró-ativa, não necessariamente em partidos políticos, mas no ambiente onde se vive. Que adiantará para a libertação do passado ignominioso que acompanha a maioria de nós, se não lograrmos ser alguém melhor e mais solidário dentro do próprio lar? Que avaliação fazer de uma convivência "santificada" nas organizações espíritas, mantendo uma personalidade mutável e submissa aos hábitos deseducativos que nutrem os grupos de atuação social onde se movimenta?

Os “Guias da Verdade” apontaram excelente diretriz acerca desse insulamento quando afirmaram: “Fazer maior soma de bem do que de mal constitui a melhor expiação. Evitando um mal, aquele que por tal motivo se insula cai noutro, pois esquece a lei de amor e de caridade (3).

O puritanismo é exterminado com coerência, adequação interior, assumindo o intransferível compromisso de enfrentar nossas mazelas.

Ser puritano é “fazer de conta”, e isso é um péssimo caminho para quem deseja ser feliz.

Que os grupos doutrinários trabalhem para que haja mais lealdade ao que se aprende e diz entre as suas “quatro paredes”. Cultivar sólida fraternidade, a fim de formar um ambiente que se permita “ser quem é”, onde haja campo para discutir: como parar de teatralizar quem gostaria de ser? Como atingir a meta de ser quem devemos e temos condições de ser?

Essa será uma importante discussão para os destinos da causa.

Estudemos com afinco e verificaremos que o orgulho é o grande patrocinador das atitudes puritanas, levando a criatura a imaginar ser alguém que, de fato, ela ainda não é. Via de regra essa imaginação especula em cima de uma auto-imagem super elevada, melíflua, tênue, “sagrada”...

Coloquemos os “pés no chão”, a Terra pode contar com a contribuição espírita.

Ao invés de se tomar a iniciativa de querer levar essa “pureza artificial” adotada em muitos centros doutrinários para a sociedade, tome-se a rota inversa e busque as lutas pessoais que se tem no mundo para tornar-se material de estudo e debate dentro dos centros, solidificando, posteriormente, uma conexão realista e eminentemente colaborativa com a abençoada sociedade acolhedora em que se renasceu.

Puritanismo, em muitos casos, é a outra face da hipocrisia. Talvez essa a razão da afirmativa do sábio Codificador: “Não basta se tenham as aparências da pureza; acima de tudo, é preciso ter a do coração”.


1. Lc 17:20
2. Mt 5:8
3. O Livro dos Espíritos – Questão 770A