quinta-feira, 7 de maio de 2020

Camuflagens e Projeções

Livro: Mereça Ser Feliz
Autora Espiritual: Ermance Dufaux

Capítulo 17

“Além dos notoriamente malignos, que se insinuam nas reuniões, há os que, pelo próprio caráter, levam consigo a perturbação a toda parte aonde vão: nunca, portanto, será demasiada toda a circunspeção, na admissão de elementos novos.”

O Livro dos Médiuns – Capítulo 29 – Item 338

As transferências e as camuflagens na esfera dos sentimentos é fenômeno complexo e rotineiro nos relacionamentos.

Conhecidos pela psicanálise como mecanismos de defesa do
inconsciente, as projeções e camuflagens afetivas ocorrem em razão de processos educacionais da infância centrados no ego, ou por impulsos de núcleos afetivos consolidados em outras reencarnações, ou ainda pelo desconhecimento de si mesmo, sendo capazes todas essas causas de gerar extensas lutas íntimas e trágicas provas no quadro dos envolvimentos passionais.

O reflexo mais eminente da presença de semelhantes defesas psíquicas é a perda da autenticidade humana. Na medida em que vai amadurecendo física e psicologicamente, a criança, o jovem e mais tarde o adulto aprendem a esconder-se de si e do mundo, gerando um complicado mecanismo para atendimento dos apelos sociais e paternais, quase sempre, em desacordo com sua autêntica personalidade.

Perdendo a autenticidade o ser não se plenifica, arroja-se no desajuste ensejando o ebulir de culpas de outras vidas que não foram absorvidas, vivendo infeliz e sob intensa pressão interna em neuroses de longo curso.

Dependência, ciúme, possessividade e medo comandam as atitudes em direção a relações imaturas, sofríveis, pobres de confiança e caráter, ensejando a potencialização dessas camuflagens psicológicas junto aos grupos de ação do ser humano.

Os "esconderijos psíquicos" têm como origem mais saliente o medo: medo de si mesmo, medo de seus verdadeiros sentimentos. Não havendo coragem suficiente e nem desejo para tal, a criatura foge do auto-encontro, incapacitando-se, a cada fuga, em dominar sua vida interior, deixando escapar a chance de olhar-se no espelho da consciência e cuidar de sua "realidade transitória", resgatando a sua "realidade natural e Divina".

Esse encontro, porque é doloroso, quanto mais for adiado mais a constrange a ombrear com um "eu falso" que lhe impinge sentimentos de desconforto e falsidade, caso possua um mínimo de formação ética, ou então faz-lha penetrar na conduta degenerada caso ela desista de entender o que se passa consigo mesma, ante o caleidoscópio de seus sentimentos e pensamentos confusos e inconstantes acerca do querer e do gostar.

Nas relações espíritas notabiliza-se um fato específico, credor de estudo e meditação.Camuflam-se desejos sexuais e afetivos, que são transferidos para outras vivências reencarnatórias, escondendo o verdadeiro sentimento de sua presente existência, evitando admiti-lo. Sentimentos esses que maceram e doem na acústica do coração e da consciência, mas que, queiramos ou não, despontam na vida de relação.

Muitos amigos queridos do ideal, utilizando-se de expedientes humorísticos pouco sérios, zombam desses sentimentos tratando-os com brincadeiras, a fim de não ter que olhar para os mesmos com a seriedade que eles merecem em favor da própria paz. Frases que parecem ingênuas podem, em muitos casos, carregar dramas de largo curso, tais como: "já devemos ter sido muito íntimos", "aquela pessoa deve ser minha alma gêmea", "tenho uma afinidade especial com tal coração", "sinto como se ele fosse meu pai", "há uma coisa muito forte que nos une, devemos ter vivido juntos"...

Vigiemos semelhante comportamento, perguntando-nos, com honestidade, qual a certeza e fundamento lógico temos para afirmar que as raízes de tais emoções pertencem ao passado de outras existências corporais. Para vós outros que estais na carne, agraciados com o esquecimento cerebral, torna-se mais difícil ainda tecer afirmativas verdadeiras sobre semelhante ocorrência. Ainda que sejam sentimentos ou lembranças de outras vidas, se elas se encontram ativas na vida presente, importa o que se sente hoje, devem ser elaborados como pertencentes à atualidade.

Se tais incursões mnemônicas são permitidas é com função educativa e não para que tenhamos um “lugarzinho na mente”, como se fosse um álibi com o qual possamos justificar, uns perante os outros, tudo aquilo que sentimos e não deveríamos. Isso não nos torna menos responsáveis pela vida afetiva. Assumamos com responsabilidade os nossos sentimentos, conhecendo-lhes os motivos, olhando para eles de frente, sem temor ou vergonha. Essa a primeira condição para os transformarmos em valores espirituais que impulsionam a evolução.

Entendamos por assumir sentimentos, o serviço de autoconhecimento e auto-aceitação dos mesmos em nós com finalidades superiores, longe do “assumir” de alguns profissionais levianos e descuidados que induzem seus pacientes a admitirem e viverem intensamente o seu “lado sombra”.

Como espíritas lúcidos, ao contrário, vamos assumir o nosso “lado nobre e Divino”, esquecido ou ainda não devassado pela sonda do autodescobrimento.

Tenhamos sobriedade e dispamos dessas máscaras perniciosas do relacionamento.

Rompamos com essas “fantasias de outras vidas” e definamos o processo das afinidades e desafeições, buscando entender as razões atuais de tais ocorrências do coração. Entendamos as causas presentes das antipatias e simpatias e honremo-Ias com uma conduta ética e ilibada.

Não podemos deixar de nomear essa situação como uma atitude infeliz. Ao ficar camuflando sentimentos que temos uns com os outros, atribuindo-os a existências anteriores, perdemos o ensejo responsável de travar contato com nosso mundo profundo e subjetivo em busca do autêntico amor e dos necessários ajustes emocionais que fazem parte do aprimoramento pessoal.

Nossa primeira tarefa ao depararmos com os sentimentos que não gostaríamos ou deveríamos estar sentindo, em favor do bem alheio e de nós próprios, é estudar nossas reações e edificar as soluções adequadas ao melhor encaminhamento dos pendores da afetividade.

Por sua vez, as projeções são mais complexas ainda, porque, além dos fatores causais pertinentes às camuflagens, elas contêm ainda uma outra matriz infelicitadora: a obsessão.

O jogo das aparências entre os homens, mormente nesses dias de mídia exacerbada e desumana competitividade, faz com que a "comparação patológica" estabeleça complexos e síndromes "sui generis" no capítulo das doenças do afeto e do psiquismo. Elencando valores fictícios e fugazes como a beleza perfeita, o status cultural e social, a felicidade pela posse e o sucesso no amor pelo sexo, a sociedade, desbaratada com o fenômeno da vaidade e da aparência, impõem que as pessoas se comparem sempre "para cima" e nunca "para baixo", ou seja, deseja-se o que o outro tem de melhor - o que seria muito natural não fossem os sentimentos inferiores e os complexos que se formam a partir dessas confrontações. Na mira das comparações, não havendo a possibilidade de adquirir ou ser como o outro, estabelece-se frustrações e conflitos interiores que, não sendo bem administrados, podem raiar para neuroses múltiplas.

Entre espíritas, já que os valores morais e os bons exemplos são estimulados, as referências costumam surgir no campo das realizações espirituais. Constatadas as possibilidades alheias no bem, a criatura com menos experiência, se não administrar bem suas projeções, estabelecerá comparações que conduzirão à falsa modéstia ou ao desânimo, confrontando sua suposta incapacidade em função da desenvoltura do outro, projetando sua limitação sem absorver o exemplo alheio.

Muitas vezes ocorre um processo de idealização no outro daquilo que não conseguimos êxito no relacionamento conjugal, profissional ou cultural, levando a sentimentos que são nomeados como "velhas afinidades", quando, em verdade, estamos locupletando com o outro ou desejando intensamento sua participação em nossa vida para fruir com ele o que lhe pertence no terreno das conquistas, incensando a princípio uma amizade e, mais adiante, possivelmente, um relacionamento amoroso. É a realização no outro daquilo que gostaríamos de ser, um processo sutil que pode tornar-se dolorosa prisão de compensação e escravização afetiva, levando a uma "coagulação dos sentimentos".

Outra faceta mais conhecida das projeções é a dos defeitos, nas quais vemos nossas imperfeições mais marcantes e menos admitidas para nós na pessoa do outro.

A valorização das próprias potencialidades, na medida em que são descobertas, é a receita para lidar com as projeções de modo proveitoso para o crescimento pessoal. Aprender a estabelecer comparações com o mundo subjetivo e real das criaturas, a essência do ser humano, o que de fato ele é, sua realidade profunda, eis a grande meta a que devemos devotar, conforme assevera Antoine de Saint-Exupéry, "o essencial é invisível aos olhos".

Enquanto mantivermos sintonia com as carapaças sócio-humanas estaremos apenas vivendo na superficialidade das emoções, atraídos para realidades fugazes, quais crianças que tornam brinquedos umas das outras e logo os largam para novas investidas sem rumo e objetivo!

Somente treinando e desenvolvendo a sensibilidade enobrecedora estaremos aptos a fazer comparações e projeções mais sadias, promotoras de paz e contentamento espiritual, fruto da resignação dinâmica, ativa.

Eduquemo-nos para essa viagem ao mundo subjetivo do Espírito, em plena carne, porém lúcidos e em estado de alerta mental. Aprendamos a comparar-nos com o velho, o doente, o sábio sem diplomas, a quem ninguém quer se comparar, ou ainda com aqueles que agora estão no arrependimento sobre um leito de dor, sem tempo e sem mais opções de progresso, esperando a presença da morte para ajuizar sobre seu futuro. Comparemo-nos com aqueles que agora se encontram no ocaso da vida, avaliando sua existência com enorme sentimento de perda, asilando uma frágil esperança de paz para sua consciência. Avaliemo-nos no momento atual, frente àqueles que renascerão em situações mais dolorosas e que revoltam e odeiam a vida, dispostos a qualquer ato infeliz.

Reflitamos sempre, em nossas comparações, nos que têm menos, nos menos apreciados pelo mundo social, elastecendo a sensibilidade para o que se passa invisível aos olhos comuns, e perceberemos lições estimuladoras e preenchedoras de júbilo com o que somos e temos.

Aliás, sem exageros, o que destacamos de menos bom em nosso próximo quase sempre trazemos em nós mesmos. Se não for uma experiência do presente poderá ser uma imperfeição de outrora que, embora vencida ou dominada, tem registros claros na intimidade que facilitam percebê-la em outras pessoas na atual existência, com fins reeducativos.

Vejamos as camuflagens e projeções como etapas do aprendizado afetivo, fenômenos comuns do sentimento humano, mas que carecem educação e responsabilidade para serem conduzidos a fins superiores. São processos de defesa da mente para abrandar a angústia da inferioridade humana que com o tempo superaremos.

Na medida em que lhes entendemos a forma de exprimir na personalidade, dilatamos as chances de autoconhecimento, pois são “pistas” sobre nós mesmos. O que tentamos esconder ou projetamos no mundo das formas são expressões do mundo profundo e podem ser fortes aliados no bom combate, naquele que consiste em lutarmos conosco mesmo, transformando hábitos edificando sentimentos mais afinados com o verdadeiro amor, proposto pelo Evangelho, e com a rota de espiritualização apontada pelos conceitos espíritas.

Mediante a colocação do codificador na referência acima, compreendemos bem a importância da circunspecção de elementos novos em nossos grupos, em se considerando o desconhecido mundo interior.

Circunspecção, no entanto, deve significar acolhimento fraternal para propiciar as condições ao novel frequentador para ter as possibilidades de fazer esse mergulho no mar de si mesmo, sem afogar-se nos sentimentos de insuficiência, decepção e tristeza.

Circunspecção quer dizer "exame demorado, atenção, prudência", o que nos leva a concluir que esse acolhimento, essa recepção é um serviço do tempo para o bem de todos, mas não pode deixar de ser feita, porque se analisarmos bem, o movimento espírita é um somatório geral de todas as nossas qualidades e esforços, mas também das projeções e camuflagens. Pensemos e debatamos, portanto, o quanto tudo será diferente quando aprendermos a circunspecção espírita, fazendo das agremiações doutrinárias uma escola do espírito destinada a desenvolver condições íntimas para a humanidade ser mais feliz e autêntica!

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