segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Credibilidade Social e Cidadania

Livro: Mereça Ser Feliz
Autora Espiritual: Ermance Dufaux

Capítulo 8

"Conhecemos um senhor que foi aceito para um emprego de confiança, numa casa importante, porque era espírita sincero. Entenderam que as suas crenças eram uma garantia da sua moralidade."

O Livro dos Médiuns - Capítulo 31 - Comunicação 21

Todos somos cidadãos universais com direitos divinos e a reencarnação na Terra é a nossa participação democrática e ativa pelo bem da obra do Pai. Retornando ao planeta, além de laborar pelo crescimento pessoal, cooperamos com a colmeia social onde renascemos lapidando, paulatinamente, a credibilidade.

Credibilidade é aquilo ou aquele em que se pode crer, é o espírito da confiança abrindo espaços para a ação benfazeja e a colaboração espontânea. É o traço que nos promove à condição de Herdeiros Conscientes na obra de Deus, e que nos enseja autoridade real uns perante os outros.

Confiança, porém, é tecida pelos fios morais da conduta que reflete a consciência em paz e harmonia; brota nos corações em razão das expressões de fidelidade, retidão de caráter e amorosidade qual se fosse um perfume da alma que agrada a todos e os fazem sentir bem na companhia de quem o exala.

Essa deveria ser a condição social de todo homem iluminado pelas verdades espiritistas nos campos sociais em que se encontra. O homem de bem, conforme a brilhante exposição de O Evangelho Segundo o Espiritismo (1), deveria ser o objetivo maior de todo espírita. No entanto, o orgulho, em suas variadas camuflagens, tem inclinado muitas almas desavisadas a outra espécie de atitude ante os chamados para o serviço nas coletividades de sua participação. Tomadas de ufanismo esperam a atenção e o crédito alheio nas suas ideias externadas com certa dose de fanatismo como se fossem, em si mesmas, depositárias de "grande revelação", sentindo-se agraciados com a missão de converter.

Ufanismo é uma palavra que define o orgulho ou a vaidade desmedida que temos de algo. Seria, portanto, um contra-senso guardarmos qualquer tipo de ufanismo com o Espiritismo, considerando que a sua meta essencial é destruir o materialismo, fruto do orgulho e do egoísmo, e demonstrar aos homens onde se encontram seus verdadeiros interesses (2).

Muitas mentes ainda se locupletam com as manifestações afetivas de orgulho em função da grandeza da doutrina, cultivando "fantasias" originadas de velhos hábitos religiosistas de supremacia, disseminando concepções conversionistas para o mundo, como se a Verdade fosse "propriedade" exclusiva dos domínios onde moureja, não distanciando muito dos gestos de catequese e louvor exterior. Detentoras de novos conhecimentos auferidos na literatura doutrinária ou nas palestras esclarecedoras, surpreendem-se com a lógica e excelsitude das novas realidades e logo sentem incontida necessidade de passar a outrem as belezas que presenciou.

De forma alguma devemos repreender o gesto saudável de dividir o conhecimento espírita, contudo, devemos estar atentos na forma como o fazemos. Estamos compartilhando algo que está sendo significativo e valoroso para nós ou o que valorizamos mais para o outro?

Esse ato com feições de generosidade e amor, em muitos lances, é a clara manifestação de intenções partidárias de muitos corações ainda afeitos ao religiosismo, acreditando que as respostas que lhes servem, igualmente servirão para todos.

Esse sutil ufanismo ronda as esferas doutrinárias quando se crê, com a melhor das intenções, que a Revelação Espírita é a "única" estrada de acesso para a libertação do homem junto aos cativeiros das expiações terrenas. Semelhante concepção tem determinado uma "ética de enclausuramento" que alimenta as expectativas de boa parte de companheiros de ideal, levando a crer que a sociedade necessita da crença espírita nos moldes em que a esposamos, caso pretendam livrar-se das dificuldades de todos os matizes e adquirirem a felicidade. Pregam felicidade e apontam rumos, aliviando o outro com a tese de que em Espiritismo não se cobra valores financeiros pelos bens espirituais, incentivando a procura e a adesão como se angariasse um fiel para a salvação, despreocupando em confortar as chagas e ser o mensageiro da doutrina em si próprio, para com aquele que sofre e necessita de arrimo.

Essa "ética de reclusão" enseja uma quase "alienação" dos centros espíritas junto aos problemas sociais, porque destaca-se como vantajoso e correto que a sociedade busque o centro e não o inverso.

Forma-se assim uma linguagem, um discurso estereotipado com sugestões derivadas dessa atitude ufanista como a de solicitar ao novo frequentador que deixe a sua religião para poder frequentar a casa espírita, ou ainda que abdique de novenas e hábitos de adoração por não condizerem com o "estereótipo espírita"; ou mesmo na formulação de teses sobre carmas e mediunidade a desenvolver como se fossem "senhas de aceitação e batismo" do novo aprendiz nas atividades doutrinárias.

O Espiritismo se tornaria uma crença geral e não uma religião geral, asseveraram os Sábios Guias ao codificador (3). Por sua vez, Allan Kardec estabeleceu: "O Espiritismo não cria a renovação social; a madureza da Humanidade é que fará dessa renovação uma necessidade. Pelo seu poder moralizador, por suas tendências progressistas, pela amplitude de suas vistas, pela generalidade das questões que abrange, o Espiritismo é mais apto, do que qualquer outra doutrina, a secundar o movimento de regeneração" (4). O papel do Espiritismo, fica bem claro, é secundar, ou seja, coadjuvar o movimento regenerador da humanidade.

Grande decepção será pernoitar nesse ufanismo doutrinário e acordar nas paragens extrafísicas decepcionados com a dura realidade de nossa condição espiritual, quando então será constatado que incontáveis almas vitoriosas e felizes jamais ouviram falar em Espiritismo, porque serviram única e exclusivamente à religião cósmica da caridade: muito amaram.

O amor é o movimento que nos importa acima de quaisquer princípios ou ideias. Credibilidade só pode ser adquirida pela alma que ama, e não por credenciais exteriores de adesão a grupos ou movimentos nos fins de semana.

Mormente nesse momento em que a Terra descortina novos horizontes para o incomum, o místico, o insondável, o tema espiritualidade tornou-se encantador, atraente, e o espiritismo está em evidência social nos cinemas ou novelas, jornalismo e revistas do mundo inteiro.

Mas espiritualidade é tesouro de muitos povos e culturas em todos os tempos. Deter-se em comparar o Espiritismo com tais escolas do mundo, ressaltando-lhe a grandeza e confinando tais conquistas evolutivas a paredes ideológicas seguidas de velhas posturas de conversão em massa, é vaidade e invigilância declarada.

A renovação social surge da intimidade. Bem enfocou o senhor Allan Kardec, o sociólogo da Era do Espírito, quando disse: "O Espiritismo não cria a renovação social; a madureza da Humanidade é que fará dessa renovação uma necessidade." E essa madureza vem se operando, ato contínuo, enquanto ficamos nas "janelas de nossas agremiações" esperando que o mundo se converta ao Espiritismo, assemelhando-se à figura lendária Rapunzel, deixando crescer longas tranças de prepotência, enunciando frases do tipo: "o Espiritismo explica tudo, tem resposta para tudo há mais de um século!"

O papel da Doutrina dos Espíritos não é criar uma cultura que transforme o mundo, mas avalizar as conquistas da ciência humana e cooperar para destiná-las ao conceito de Deus, da imortalidade, da reencarnação, do intercâmbio entre os mundos, da pluralidade de vidas nos orbes, dilatando a visão caótica do materialismo e apresentando ao ser humano a visão sistêmica do universo em sua imensurável plenitude. A partir dessa concepção, a outra finalidade do Espiritismo é convocar o homem a remodelar seu comportamento ante essa ordem celeste que vige em todo lugar, e capacitá-lo para assumir sua destinação divina e gloriosa de co-criador, onde e como se encontrar, através da educação de si mesmo na direção da formação do homem de bem. Nesse contexto, ser espírita ou não ser, dentro dos padrões do "espiritismo dos homens", pouca importância tem para o processo renovador da humanidade, porque o que importa é que ele, o cidadão social, aprenda a se tornar um cidadão universal através da aquisição de uma cosmovisão, talhada nos conceitos transcendentais da existência.

Longe de sermões e puritanismo estéril, a credibilidade do espírita será aferida pela sua postura cidadã e moralizadora, com responsabilidade social e ação pró-ativa junto às comunidades onde foi chamado a servir, respeitando cada criatura com suas singularidades e sendo o fermento que leveda e transforma pela força da vivência íntegra, lúcida e amorosa, sem preconceitos que impeçam sua proximidade da dor alheia e sem medo que o aprisionem a aceitar as diferenças e os diferentes dentro de suas singularidades.

O próprio Cristo disse que o maior seria aquele que mais servisse (5). E para servir não podemos desdenhar a cooperação comunitária, os projetos de ação, a disposição de levar o saber espírita de forma declaradamente contextualizada e dinâmica, mais pela conduta que pelas pregações.

A cidadania do verdadeiro espírita, conforme testemunho anotado em nossa referência de apoio, será a credibilidade que vai angariar com sua postura moral de irrestrito respeito aos esforços humanos de que natureza sejam.

Espera-se, portanto, sua integração harmônica e parceira com esses esforços, e, sobretudo, com a transformação de si mesmo em um homem melhor e mais benigno ao engenho social, florindo onde foi plantado, seja em que condição for.


1. O Evangelho Segundo o Espiritismo - Capítulo 17 - Item 3
2. O Livro dos Espíritos - Questão 799
3. O Livro dos Espíritos - Questão 798
4. A Gênese - Capítulo 18 - Item 25
5. Mt 20:26

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

Comparações

Livro: Mereça Ser Feliz
Autora Espiritual: Ermance Dufaux

Capítulo 7

"O orgulho vos induz a julgar-vos mais do que sois; a não suportardes uma comparação que vos possa rebaixar; a vos considerardes, ao contrário, tão acima dos vossos irmãos, quer em espírito, quer em posição social, quer mesmo em vantagens pessoais, que o menor paralelo vos irrita e aborrece. Que sucede então? -Entregais-vos à cólera."

O Evangelho Segundo o Espiritismo - Capítulo 9 - Item 9

A comparação é um dos efeitos mais notáveis da presença do orgulho nas relações.

Desde as primeiras percepções infantis, o ato de comparar é uma necessidade para a aquisição da consciência. As referências paternas e maternas, inicialmente, e depois as sociais, são âncoras de desenvolvimento da personalidade. Nesse particular o afeto tem papel preponderante, porque conforme a qualidade dos sentimentos atribuídos a tudo aquilo que compõe as nossas experiências, teremos uma percepção, uma "representação psicológica" do mundo.

Quando o espírito já renasce com acentuada percentagem moral de orgulho e ainda encontra um ambiente que estimule as ilusões mundanas, os fatos tomam o colorido desse sentimento, com fortes conotações de interesse pessoal.

Nos relacionamentos, as comparações são muito utilizadas pelo orgulhoso com a finalidade de exacerbar seu conceito pessoal e rebaixar a importância dos demais. As comparações orgulhosas impedem relacionamentos gratificantes e duradouros, porque estabelecem uma competição íntima com os outros. O campo das suposições e da "imaginação fértil" alcança níveis enfermiços nesse particular. Vive-se mais o que se imagina que, propriamente, o que se sente. O homem aprende a cuidar da sua máscara com maior devoção que de sua realidade íntima.

O estresse é o resultado do escoamento energético que alimenta as criações e o mecanismo de defesa do orgulho.

A mídia desenvolve influente papel estimulando padrões.

O orgulho vai solidificando uma "imagem irreal" de si mesmo, mas que agrada aos interesses pessoais dentro das perspectivas de suas comparações. Já não se trata mais de referências para crescimento e sim da "formação de uma identidade psicológica fragilizada", acessível a assimilar tudo que faça a pessoa sentir-se valorizada, importante, forte, capaz...

A ausência de contato com a vida interior profunda vai fortalecendo essa "segunda natureza" que passa a regular mecanismos importantes da vida psíquica e mental. O orgulho tem essa característica de fazer a criatura acreditar no que não é. Parafraseando o codificador, digamos que é a imperfeição que a criatura menos confessa a si própria, por isso tem a farta possibilidade de iludir, enganar (1).

A excessiva preocupação com a opinião a seu respeito é uma neurose nesse tipo de situação.

As referências elogiosas a quem quer que seja são recebidas com desdém ou inveja, utilizando-se da "encantada" conjunção gramatical - mas - que se transformou em senha elegante para depreciar o próximo em frases inteligentes do tipo "tal companheiro é muito virtuoso, mas..."

A necessidade de diminuir o valor dos esforços alheios é um vício de proporções extraordinárias, elaborando sempre uma versão dos êxitos alheios sob o prisma da "sorte" e das facilidades como explicações para ser tão bem sucedido. O orgulho não nos permite alegrar com o sucesso alheio e suplica galardões para os sucessos pessoais, sempre dimensionados como algo para além das suas reais expressões. Em muitas dessas comparações que fazemos no intuito de tirar o brio das ações alheias, no fundo gostaríamos de ser aquela pessoa, de possuir algo que ela tem ou ser algo que ela é.

Esse sentimento de excessivo valor pessoal retira quase por completo as possibilidades da empatia e da alteridade, criando um nível acentuado de indiferença. Essa condição impede a alegria e a autenticidade nas relações deixando-nos muitas vezes carcomidos de inveja, raiva ou outras emoções perante as vitórias do próximo.

Dando exagerada importância às comparações, o orgulhoso passa a ser um "fiscal" dos atos alheios, procurando motivos para realçar-se e afirmar-se ante o próximo, a quem toma como um "oponente", ainda que não o seja, especialmente se essa criatura pensa ou age em desacordo com suas crenças e concepções. Seu campo mental funciona como um "radar" em busca de um deslize ou de um episódio que fragilize seu "opositor", e os julgamentos e reprimendas mentais comparecem inevitavelmente como um efeito dessa condição psíquica e emocional.

Tudo isso, porque o orgulho tem o poder de fazer-nos valorizar o que não somos, mas desejaríamos ser, levando a sentir e pensar que tudo que fazemos ou temos é melhor que o do outro.

Impermeabilidade é o que ocorre nesse quadro. Os relacionamentos com pessoas desse perfil tornam-se superficiais, elas não permitem que os outros penetrem sua intimidade verdadeira e revoltam-se contra os que lhe exortam com proficiência à verdade sobre si mesmos, melindrando e reagindo com veemência.

Manter aparência é muito caro e doloroso. Até mesmo nos climas espíritas verificamos alta dose dessa vivência. Começa pelo personalismo em acreditar que o caminho que seguimos, a forma como trabalhamos, os movimentos que criamos, os pensamentos que defendemos, as tarefas que fundamos, os esforços que expendemos são "recordes" que nunca serão alcançados por ninguém e que devem ser seguidos por todos. Há um flagrante desrespeito pelas opiniões e iniciativas alheias, repleto de indiferença e despeito. Quando não se recebe com júbilo a cooperação dos companheiros junto à seara, estamos vibrando fora da atmosfera de fraternidade e solidariedade que propõe o Espiritismo.

A reeducação desse "estado moral de orgulho" vai exigir-nos alguns quesitos.

Uma decidida viagem interior é o ponto de partida. Olhar para si, entender-se, pesquisar com minúcia, paciência e perseverança as formas de expressar do orgulho. Ouve-se com frequência nos meios doutrinários espíritas a manifestação verbal no estilo "nosso maior defeito é o orgulho e o egoísmo, disso já temos consciência"; propala-se com risos e mofa essa abordagem, no entanto, poucos são os que têm penetrado o mundo oculto das tendências e automatismos para conhecer a singularidade do seu orgulho. Não existem "dois orgulhos" iguais. Conquanto ele possa ser definido, de forma genérica, como um sentimento de superioridade, nada além disso é idêntico em se tratando de comparar a sua forma de manifestar em cada personalidade. Temos de convir que nem sempre essa frase rotineira de nosso meio significa consciência, não passando, em algumas ocasiões, de mero chavão que causa a breve sensação de autodomínio e sabedoria. Saber onde, como, porque e quando ocorrem as manifestações dessa imperfeição é um trabalho para séculos. O importante é começar já.

A partir dessa viagem íntima é imperiosa uma vigília incansável para estabelecer atitudes que correspondam realmente ao que sentimos e somos, sem partir para os extremos da falsa modéstia, da culpa e do pieguismo. Ser o que somos é o desafio, evitando seguir os ditames da imaginação que nos inclina a fugir da realidade; romper com máscaras e formalidades desnecessárias, vivendo com espontaneidade responsável. Os exercícios da empatia no ato de aprender a ouvir o outro e da alteridade no sentimento de respeitar as diferenças do outro serão pródigos no esmaecimento dos interesses personalistas. Nada nos impede de fazer as comparações a fim de tirar algum proveito ou entender melhor nossos sentimentos, todavia, sem ilusões...

A única comparação útil e proveitosa, sob a ótica do aprendizado espiritual, é aquela que fazemos conosco próprio, procurando sempre aferir se estamos hoje um pouco melhor em comparação ao ontem.

1. O Livro dos Médiuns - Capítulo 20 - Item 228

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

Inteligência Intrapessoal

Livro: Mereça Ser Feliz
Autora Espiritual: Ermance Dufaux

Capítulo 6

"Em que consiste a felicidade dos bons Espíritos?"
"Em conhecerem todas as coisas; (...)" 

O Livro dos Espíritos - questão 967

O estudo dos pilares básicos da boa convivência é como janela que se abre para o grande sol da experiência e da felicidade.

Conviver é possibilidade conferida a todos; a boa convivência, porém, é para quem deseja crescer e educar-se.

Boa convivência não é somente polidez social. Consignemos como pilares dessa arte de relacionar o auto-amor, o autoconhecimento, o afeto e a ética.

Estudemos alguns ângulos do amor a si mesmo por se tratar de pilar mestre das relações saudáveis, duradouras e gratificantes; sem conviver bem consigo, amando-se, não haverá harmonia nas interações humanas com o outro.

A vida que nos circunda é rica de elementos indutores do mundo íntimo; nenhum deles, porém, é tão expressivo quanto o contato interpessoal. Respostas emocionais são acionadas a partir da convivência, desenvolvendo um novo mundo de sentidos para quem dela faz parte.

Renova-se a criatura a cada novo contato; cada episódio da interação humana é um convite ao crescimento, ao estabelecimento de novos valores na intimidade. Mesmo os desacordos e desencontros constituem escolas oportunas de reflexão e reavaliação da vida pessoal.

Analisemos um fato ilustrativo da rotina humana: um coração amigo, em um momento de atribulação íntima, discutia celebremente com as imagens mentais que formulava acerca de um ente querido de sua convivência. Envolvido em suas mentalizações discutia, revidava, e era tão descontrolado seu estado emocional que gesticulava mãos e rosto sem se dar conta que as pessoas à sua volta lhe observavam, uns com preocupação, outros com chacota... Ele estava em plena fila de um banco para quitar uma conta telefônica...

Esse tem sido um quadro comum, o retrato fiel de como lidamos conosco em relação aos outros - um dos pilares da boa convivência, senão o principal. Nesse caso, o companheiro estava em litígio com os seus próprios sentimentos relativamente a alguém, era uma "briga mental".

Esse estado de ensimesmamento - a vivência mental das relações - tem sido uma tônica dos dias atuais, face ao contínuo mascarar do mundo íntimo que o homem moderno tem se imposto na garantia da satisfação de seus fins em sociedade. Nem sempre podendo externar o que sente a quem deveria, então passa a formular para si mesmo o que gostaria de expressar a outrem ante as pressões internas das discordâncias, dos agastamentos, das traições, dos gestos impensados e de tantos outros lances dos conflitos do relacionamento.

A questão em análise é fundamental para o entendimento dos laços que construímos com as pessoas de nossa rotina diária.

O problema não é como convivemos com o outro, mas sim como convivemos com o que sentimos e pensamos em relação ao outro.

Por isso a boa convivência consigo mesmo é o princípio seguro de equilíbrio para uma interação proveitosa. Tal princípio consagra a necessidade de revermos os males da convivência, prioritariamente, em nós mesmos, antes de quaisquer cobranças ou transferências de responsabilidade. E' o imperativo de estabelecermos acordos conosco a partir de um balanço e avaliação sobre tudo que envolva os atos que nos vinculam a esse ou aquele coração. Ainda que alguém divida conosco a rotina dos dias ou as circunstâncias passageiras e seja necessitado de corretivo, precisamos habituar a sondar as nossas disposições íntimas antes de qualquer investimento no outro; estar consciencialmente ajustado para somente depois partir de forma elevada em direção às necessidades do crescimento alheio, pois do contrário perdemos a autoridade e o controle necessários para ser agente de educação e alerta para o próximo.

Consideremos ainda que muitas vezes após nossos auto-exames poderemos perceber mais claramente a necessidade de mudança, tão somente, em nossos atos e decisões. O descuido nesse setor da conduta nos leva a detectar obstáculos somente na órbita dos que partilham-nos as vivências, enceguecendo-nos para as descobertas extraordinárias que poderíamos fazer sobre nós próprios, quando dispomos ao mergulho no estudo das nossas reações uns frente aos outros.

Essa postura é a bússola das relações indicando-nos a hora de calar, o momento de agir, o instante de corrigir, a ocasião de discordar e o ensejo de tolerar. Leis que conduzem-na ao patamar da caridade.

Essa interiorização, estudada pelas modernas ciências psicológicas, recebe o nome de Inteligência Intrapessoal, competência pela qual dominamos amplo espectro de habilidades como a empatia, a assertividade e a auto-revelação.

A socialização, princípio contido nas Leis Naturais, estabelece o encontro das singularidades humanas, objetivando sobretudo essa viagem à intimidade da individualidade. Quanto mais rápido penetramos nesse caminho educativo, mais identificaremos as razões das refregas do relacionamento, conquistando paz e alegria nas relações, visão e equilíbrio para conosco.

Face ao exposto, conclui-se sobre a indeclinável necessidade de avaliações permanentes no trabalho da autodescoberta, estudando os reflexos perturbantes das relações que edificamos, a fim de aquilatarmos com exatidão a origem de nossas reações.

Destacando o mal no outro, ativamos fios magnéticos de atração que nos ligam a essa energia que passamos a consumir e digerir no campo mental, detonando a crise íntima que poderá ser sustentada por adversários espirituais astutos. Dessa forma, mantemo-nos aferrados à sombra de nós mesmos, e sempre deflagramos maus sentimentos com os quais enveredamos pelos desencontros e aborrecimentos da convivência, porque sempre estaremos propensos a focar o negativo, as imperfeições.

A opressão dos conflitos é mantenedora da fuga de si mesmo, e o auto-amor somente ocorrerá quando dispormos ao auto-encontro, à redefinição da auto-imagem que oculta mazelas, à retirada da máscara: voltar o espelho da mente para si, interiorização.

Estar bem consigo é pilar essencial da boa convivência. Fazendo assim, partimos em direção ao próximo com o melhor de nós, aptos a vitalizar as relações com o alimento do bem e do amor, convertendo-nos em fulcros irradiadores de paz e contentamento que serão fortes atrativos de enobrecimento e cooperação onde estivermos, transmitindo esperança e educação para os que se encontrem no raio de nossas ações.

Urge fazermos o aprendizado do auto-amor, dialogarmos com a intimidade, indagar de nossos sentimentos a razão de sua existência, procurar os acordos íntimos. Se não aprendermos a gostar de nós, a nos aceitarmos, não conseguiremos a fluência do amor ao próximo.

Uma convivência pacífica com as imperfeições, a caridade conosco, será fonte de apaziguamento e elevadas emoções.

Nesse aprendizado espera-nos a grande lição de trabalharmos pelo desenvolvimento de nossos potenciais Divinos; ao invés de ficarmos lutando contra mazelas, faremos o serviço de laborar a favor de novos valores, prestigiando o positivo. Sem querer exterminar o passado, haveremos de aprender a transformá-lo.

Esse será o iluminado labor de conquistar a nossa sombra, amando-a, sem recriminações e culpas, sintonizando a mente no "ser" de luz e paz que existe embrionário em cada um dos Filhos de Deus, adentrando, definitivamente, o patamar declinado na resposta dos Sábios Guias da Humanidade a Kardec: a felicidade dos Espíritos superiores consiste em conhecerem todas as coisas, e nós inferimos: inclusive a si mesmo.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Confessai-vos uns aos Outros

Livro: Mereça Ser Feliz
Autora Espiritual: Ermance Dufaux

Capítulo 5 

"Confessai as vossas culpas uns aos outros, e orai uns pelos outros, para que sareis. "
Tg 5:16

O admirável trabalhador espírita da cidade de Belo Horizonte, Mauro Albino, entregou-nos oportunamente valoroso relato e solicitou-nos enviá-lo aos amigos reencarnados quando oportuno. Considerando o pedido de nosso amigo e o valor de sua oferenda, transmitimos as suas palavras conforme o texto que nos fora passado:

"As inesgotáveis lições do mundo dos espíritos inebriavam minha vontade de aprender. Fazíamos visitações de aprendizado junto aos celeiros da Verdade espírita. Certa feita, Albertino, meu instrutor, levou-me a singelo grupo espírita nas cercanias da capital mineira.

Bem antes de alcançarmos as terras das alterosas, via-se a luz espiritual daquele recinto de amor a longa distância.

Faltavam dez minutos para as vinte horas.

Adentramos o centro espírita. Era intensa a movimentação em ambos os planos. Em uma saleta mais resguardada, vimos o irmão Santos, presidente daquela agremiação, em sentida prece a Jesus pelas tarefas da noite. Após isso, expediu normas à pequena equipe de atendentes para os serviços do diálogo fraterno que logo se iniciaria. Nosso irmão Santos apresentava um halo reluzente que denotava paz e equilíbrio interior.

Todos saíram para seus respectivos locais de atendimento. Diminutas cabines dispostas em linha reta compunham o espaço reservado ao serviço da caridade. Ali seria dispensado o conforto e o alívio para as dores de muitos corações em prova.

Acompanhamos o irmão Santos à sua cabine. Permanecemos em silêncio e introspecção. Diversas companhias espirituais se lhe sintonizaram mentalmente e nos saudaram discretas, porém, atenciosas.

Entrou então a primeira assistida. Era uma mulher jovem e bela. Indagada sobre os motivos que a conduziram até ali, ela não titubeou:

— Venho aqui porque sou uma mulher infeliz. Desde a infância apresento comportamento estranho. Meu pai, a quem tanto amava, partiu cedo. Na juventude veio a orfandade e muito imatura, aos 23 anos, desposei um homem viciado e leviano. Já havia sofrido o bastante para continuar com desejo de viver. Separamo-nos e a partir de então comecei a desalinhar-me no comportamento afetivo. Por onde andasse era como se uma "vontade alheia" invadisse-me, inclinando meus desejos para a irresponsabilidade. Ocasionalmente, persegui afoita e secretamente um homem comprometido até conquistar-lhe o interesse...

— Compreendo minha irmã, compreendo... — dizia o atendente com muito carinho.

Fomos observando o atendimento e, na medida em que a jovem utilizava-se da sinceridade, a luminosidade de Santos reduzia-se. Os protetores tomavam providências de cautela e Albertino rogou-me a prece sustentadora. Apesar de minha inexperiência, percebi que se tratava de um momento inesperado.

A conversa, pouco a pouco, tomava rumos inconvenientes e Santos, num ato de invigilância, permitiu-se o descuido da curiosidade anti fraternal, envolvendo-se em detalhes dispensáveis do drama da enferma à sua frente.

Após o diálogo, o dirigente encaminhou-a ao passe e permaneceu na saleta a pensar. Constatamos que o halo luminoso de antes havia diminuído em intensidade, seus pensamentos estavam em intensa perturbação. Aguçamos um tanto mais os "ouvidos mentais" sob o apelo de Albertino e pudemos perceber com nitidez a gravidade de sua tormenta interior. Dizia para consigo mesmo:

— Jesus, por que o Senhor faz isso comigo? Como posso resistir a semelhante tentação? Perdoe-me, mas tenho minhas necessidades!... Estou confuso e fraco. Não consigo resistir!

Ele havia se envolvido incontrolavelmente com a bela jovem. Permitiu-se sonhos de ventura e paixão, enquanto ouvia a dor alheia, e, num impulso infantil, mas demonstrando uma fachada de tranquilidade, atravessou todas as dependências da instituição em passo apressado e foi até a sala dos passes, carregando enorme desespero e lascívia. Apenas queria fruir o prazer de vê-la outra vez.

No entanto, ela já não se encontrava mais lá; optou por não tomar o passe e retornou a seu lar...

Terminada a tarefa, seguimos o dedicado servidor até a sua residência. Esquivou-se dos cumprimentos de cordialidade, deixando seus familiares atônitos e trancou-se em seu escritório particular, recusando a conversa e a convivência. Durante toda a noite somente um pensamento saltava em sua mente: "cuidaria especialmente daquele caso". Seu coração carente povoava-se de sentimentos inconfessáveis... Santos era um pai de três filhos lindos e sua esposa, Ana, era responsável pela creche na casa em que serviam, uma família feliz.

Albertino mostrou-me ao longo dos dias seguintes os quadros mentais enfermiços suscetíveis de ocorrer com qualquer trabalhador do Cristo, desde que deixasse de manter sua ligação com as fontes de sustentação da providência divina.

A jovem retornaria na semana posterior, contudo, face ao desequilíbrio de Santos, a equipe espiritual daquela casa providenciou-lhe outros caminhos de amparo para evitar o pior.

Curioso e surpreso, como de costume ante as realidades que se antepunham às novas vivências como recém-desencarnado, perguntei a Albertino:

— Mas como pode alguém atuar em nome do amor e ficar vulnerável a esse ponto? Por que não houve uma intercessão para socorrer o irmão presidente? Seria justo permanecer nesse estado, tomando por base que estava socorrendo nossa irmã em nome do Cristo?

— Mauro, nosso companheiro é um reincidente contumaz. Sua invigilância vem agravando-se a bom tempo. Como ninguém lhe supervisiona os atos, considerando que ele é o "supervisor" de todos na condição de dirigente, fica à mercê de suas limitações. Não tendo quem possa lhe ouvir ou não querendo abrir-se para o diálogo sincero com quem vote confiança, enfraquece-se em lamentável crise de sigilo mantendo a fachada do bom espírita, porém solitário e cansado em suas lutas. O amparo tem-lhe sido constante, mas seu comportamento desalinha-se dia após dia em direção ao inevitável. O trabalhador do Cristo em qualquer posição que se encontre necessita assumir sua condição de doente e pedir ajuda. Entretanto, nosso irmão Santos iludiu-se com o teste das aparências e submeteu-se à ilusão da sublimidade de fachada, evitando dividir seus conflitos e sombras com quem quer que seja. Considerava consigo próprio que na condição de presidente não deveria sentir os dramas por que passa, sua tarefa e obrigação era ajudar e tinha tudo para não sentir mais os apelos e conflitos que carregava.

A lição oportuna foi arquivada. Depois disso fizemos diversas excursões educativas e constatei que o caso Santos é um mal na coletividade espírita de proporções mais avantajadas que podia-se imaginar. Uma crise de sigilo por parte daqueles que orientam e conduzem diversas células do Espiritismo cristão, em nome de uma autoridade imposta pelos cargos ou responsabilidades assumidas na escola do centro espírita e sustentada pelo orgulho.

Ante a proporção dessa questão, resolvemos por transmitir aos irmãos domiciliados na carne o apelo para a formação de grupos mais amigos e condutores um tanto mais humildes, em favor de si mesmos.

Ninguém perde autoridade por se revelar nos esforços íntimos para superação de suas tendências. Esse sigilo é pasto para a obsessão e o desequilíbrio. E' o velho bote do orgulho em criar uma imagem supervalorizada de si mesmo, como se a expressividade nas tarefas espíritas fosse sinônimo de grandeza espiritual, quando o verdadeiro traço que revela essa grandeza é a humildade em sermos o que verdadeiramente somos, fazendo-nos aceitos e respeitados, mesmo com as limitações a depurar.

O dirigente cristão e espírita deve ser autêntico sem ser inconveniente. Deve falar de suas lutas como o doente em busca da recuperação. Ter mais atenção, enquanto nas experiências físicas, a fim de não ter que penetrar o mundo interior em situações constrangedoras nas esferas inferiores da morte. Dispensar os adereços de orgulho com os quais se pretende projetar uma imagem de grandeza será alívio e vigilância a caminho da felicidade e da perfeição."

*****

Amigos da liderança espírita,

Estejamos atentos ao apelo sábio e generoso de nosso companheiro Mauro Albino.

As fileiras espíritas têm sido atacadas por essa infestação moral de vergonha em compartilhar necessidades íntimas com fins reeducativos através do diálogo construtivo, criando uma lamentável "epidemia coletiva" de sigilo e omissão acerca das realidades profundas da alma. Tratamos pouco ou nada de nossos conflitos, destinando largo tempo para falar dos outros, detectando problemas fora de nós em razão de ser doloroso o auto-enfrentamento.

Evitamos o auto-encontro permanecendo nas adjacências dos problemas, "canonizando" critérios de melhoria e crescimento espiritual que andam muito distantes das credenciais exaradas por Jesus, como se as tarefas das quais participamos fossem termômetros da nossa elevação espiritual. Confundimos com frequência a disciplina com iluminação. Somos todos candidatos ao bem, mas ainda não o trazemos de todo no coração, a despeito das nossas excelentes "folhas de serviço" à causa.

Mediunidade nobre, cargos de destaque, livros consoladores, obras de caridade, oratória fluente são recursos didáticos de auto-aperfeiçoamento e não atestados de competência de virtudes que supomos já possuir.

Ai de nós se continuarmos encantados com a desenvoltura individual nessas tarefas, aguardando privilégios diante da morte!

Vejamo-las sim como oportunidades e não espaços para impressionar com o falso "missionarismo"...

O labor espírita é campo de treino, enfermaria de recuperação na qual devemos nos aplicar com muita humildade, por mais bagagem adquirida, agindo como doentes em busca de sua alta médica.

Incontestavelmente, assumir essa posição não significa perder autoridade e sim ganhá-la, além do que estaremos nos aliviando de um fardo desnecessário imposto pela vaidade em querer ser o que achamos que devemos ser, mas ainda não damos conta de ser.

Ser autêntico e esforçar por melhorar é trilha segura em direção à felicidade definitiva.