terça-feira, 20 de setembro de 2016

Conclave de Líderes - Parte 2

Reforma Íntima Sem Martírio - Capítulo 30

(CONTINUAÇÃO de "Conclave de Líderes - Parte 1")



Após os cumprimentos finais, vimos que extensa fila de cooperadores formava um corredor indicando por onde regressariam os que estavam emancipados do corpo. Devido à condição de semitorpor, não ofereciam condições favoráveis ao diálogo, a não ser um ou outro que já demonstrava melhor habilidade nas incursões noturnas fora da vida corporal. Desfeita rapidamente aquela aglomeração, cada um retornava a seus afazeres. Rosângela, Sérgio e Pedro Helvécio, jovens com os quais sempre contávamos nas atividades do Hospital Esperança, solicitaram-­nos alguns momentos de prosa com Dona Modesta. Para nossa surpresa, quando percebemos, ela própria espontaneamente deslocava-­se da mesa onde se encontrava em nossa direção, a nos dizer:

— Teremos alcançado nossos nobres objetivos, Ermance?

— Creio que sim, Dona Modesta. O ambiente estava apropriado e, no que pude avaliar, as disposições psicológicas de nossos irmãos com a transposição do milênio, de alguma forma, infundiam-­lhes um ânimo especial para que arquivem desejavelmente a mensagem em seus corações. Precisaremos de tempo para aferir com exatidão as promessas deste momento, aguardemos. No entanto, Dona Modesta, nossos jovens, como de costume, ficaram muito motivados e querem experimentar sua vivência com algumas indagações.

— Estou à disposição.

Com sua natural curiosidade, Rosângela foi a primeira a interrogar:


— Notei certa inquietude entre os participantes nesse “estado de graça” fora da matéria. Em alguns casos, era visível o desagrado com algumas falas do professor Cícero. Como pode isso ocorrer entre os “mil escolhidos pelo Senhor” para ouvir essa preleção? Não deveriam estar alegres e demonstrado mais satisfação com a ocasião em razão da grandeza que possuem como líderes religiosos?

Ela ainda externava suas questões tomando por base a recém-­finda experiência reencarnatória nas fileiras do Protestantismo. Suas expressões ainda deixavam claras suas visões evangélicas. Seu desejo de aprender, no entanto, era enorme.

— Rosângela, minha jovem, não são “escolhidos do Senhor” e nem estão em “estado de graça”. São almas que lutam tenazmente com suas tendências. De fato, não deveriam estagiar ainda nesse psiquismo de desagrado quando ouviram as claras advertências do professor. Todavia, essas criaturas que aqui foram trazidas são os mil líderes espíritas encarnados que mais padecem de um terrível mal, o qual assola a maioria das fileiras de serviço do Cristo nas expressões religiosas de todos os tempos.

— E que mal é esse, Dona Modesta? — atalhou Rosângela, ansiosa.


— A doença da autossuficiência espiritual ou o fascínio com a importância grandiosa que muitos corações supõem possuir nos serviços de Jesus. Os amigos espíritas, especialmente os mais experimentados na arte de liderar, precisam vigiar com muita cautela o encanto que têm devotado a suas folhas de serviço. Bastas vezes confundem quantidade de tarefas e realizações com ascensão evolutiva, como se fizessem carreira nos ofícios de sua espiritualização. Ocorre que muitos corações de ideal, em todas as atividades doutrinárias, têm passado pelas tarefas sem se educarem por meio delas, e quanto mais expressivas elas são, mais aumentam os riscos de vaidade e ilusão. Temos por aqui vastos pavilhões de médiuns, divulgadores, escritores, evangelizadores da juventude, presidentes de centros espíritas, dispensadores da caridade pública, todos abençoados com as luzes da Doutrina Espírita, entretanto, sem conquistarem sua luz própria. Sufocaram-­se no orgulho com a cultura e a experiência doutrinárias e negligenciaram o engrandecimento moral de si mesmos pela reeducação dos hábitos e da aquisição de virtudes eternas. É um engano milenar da ilusão humana, ainda afeiçoada a vantagens exteriores sem a consolidação dos ensinos Cristãos no próprio coração. Como disse o Senhor: “O Reino de Deus não vem com aparência exterior” (1).

Sérgio, não contendo seu desejo de aprender e participar, externou:

— Dona Modesta, qual a principal imperfeição desses líderes que estaria redundando em problemas para os ofícios da seara?


— São excessivamente controladores por julgarem enxergar mais. Carregam consigo uma das mais antigas mazelas humanas: o desejo de serem servidos – uma faceta emocional sutil do desejo de serem amados ou da necessidade de serem queridos e aprovados pelos outros, a qual termina por ser transferida para o costume de serem bajulados e incensados pelos que os rodeiam. Esse velho monstro da alma surge sorrateiramente como um hábito doentio de ordenar e comandar pessoas, já experimentado em muitas e muitas vidas sucessivas, uma forma de satisfação do egoísmo humano. Considerando o vício de prestígio que carregam esses corações, são intensamente atraídos para posturas de destaque. Adoram os cargos e o poder e, embora possamos encontrá-­los também distantes dos títulos, estes são por eles possuídos no campo psicológico. São criaturas que realizam muito e têm significativa visão de conjunto das necessidades do movimento social em torno das ideias espíritas, apenas pecando pelo orgulho em que se inspiram por suporem possuir todas as respostas e caminhos para todas as necessidades e percalços da seara. Isso os torna úteis em certas situações e extremamente rejeitados pela arrogância em outras, quando excedem na atitude com sua suposta sapiência e grandeza. Verdadeiramente, nossos irmãos que aqui estiveram guardam conquistas apreciáveis, porém, nem sempre conseguem deixar de se enganar pelo personalismo que ainda carregam. Uma vez nessa postura, fica fácil reconhecer-­lhes as imperfeições prejudiciais ao serviço da obra cristã, porque não ouvem opiniões por julgarem ter as melhores, guardam convicções pessoais exacerbadas, não dão atenção às críticas, quase sempre decidem sozinhos, tornam-­se poucos afetivos, muito racionais e adoram mandar sem fazer, ordenar sem cumprir. O conjunto dessas características os promove a uma das condições mais inaceitáveis na atualidade para qualquer grupamento que se proponha a crescer espiritualmente: o autoritarismo.


— Mas, Dona Modesta — continuou indagando Sérgio —, o que lhes tem faltado para agirem com essa atitude de supremacia?

— Visão imortalista, meu filho. Lembro-­me como fosse hoje que, quando encarnada, o Espiritismo prático ou a mediunidade espontânea era de uma riqueza incomparável, conduzindo os homens a uma visão da vida afinada com a ética de imortalidade. Hoje, há uma priorização do assistencialismo e da preservação filosófica, na qual a grande maiorias dos núcleos distanciou-­se das vivências de intercâmbio sadias e educativas nos horizontes da mediunidade santificada. Falta-lhes o Espiritismo com espíritos, na expressão de Yvonne do Amaral Pereira. O exercício mediúnico sério tem sido escasso nas casas do Espiritismo, e o que prepondera é o consolo nas sessões de intercâmbio. Embora com seus méritos, a transcendência da faculdade que liga os mundos não tem se convertido em chances para que os benfeitores do além possam transmitir sua experiência e participar com mais assiduidade das vivências dos homens. Não foram poucas as vezes que Bezerra de Menezes teve  de contar com Centros de Umbanda e Candomblé, nos quais se encontram muitos corações afeiçoados ao amor, para fazer seus ditados ou operar suas curas. Lá, a espontaneidade e o desejo de servir muitas vezes sobressaem como qualidades indiscutíveis em relação a muitos centros doutrinários do Espiritismo, os quais têm fechado as portas mentais para o trânsito dos bons espíritos. Tem havido um engessamento voluntário do exercício mediúnico, surgido a partir da tese animista, em meados do século passado. Sem visão de vida imortal, acomodam-­se e deixam de descobrir horizontes novos. Estacionam na paralisia do pensamento em conceitos e não se permitem reciclar práticas. Muitos, além disso, infelizmente, perderam o gosto de aprender, esbaldando-­se em seus histórico de serviços, sem apresentar algo de útil para os reclames do momento atual.


Pedro Helvécio, sempre muito paciente, vendo o rumo da conversação, perguntou com sabedoria:

— Que objetiva a tarefa dessa noite, em que foram trazidos para ouvir essa linha de raciocínio sobre a reforma íntima?

— Em fazerem uma autoavaliação. Notem que o professor não lhes chamou a atenção diretamente em nada, porque senão regressariam ao corpo imediatamente com forte indisposição emocional. Nesse caso, ao recobrarem a lucidez física, alegariam que estiveram em tarefas de auxílio nas regiões inferiores. O professor, com os cuidados que exigiam o momento, tangenciou os problemas morais de nossos irmãos conclamando-­os ao tratamento. Não destacou suas doenças, e sim o remédio. Ao convocá-­los a um projeto de humanização, concede-­lhes a chave dos seus problemas porque terão que se igualar, terão de se fazer gente comum e despir-se da aura de santidade que tanto lhes apraz. Os líderes espíritas, quase sem exceções, asilam enorme sentimento de serem úteis à causa, mas se tornaram, como é natural acontecer em nosso estágio evolutivo, vítimas de si mesmos na medida em que usaram sua habilidade de gerir para interferir. Fazem uma liderança a gosto pessoal, e não conforme os imperativos do Evangelho e da pedagogia moderna...

— Quais são as chances de sucesso da iniciativa de trazê-­los aqui?

— Apesar do êxito deste momento, Helvécio, as chances de que nossos irmãos aproveitem a ocasião tanto quanto necessitam são muito reduzidas. Eles já perderam o gosto de ouvir, adoram mesmo é falar muito. Seus ouvidos não estão conforme a assertiva evangélica, ouvidos de ouvir (2). Muitos, em suas crises de autossuficiência, em verdade, zombam, inconscientemente, da inexperiência alheia expedindo prognósticos e avaliações sem considerar o valor que possuem para a tarefa do Cristo. Quando alguns tomam caminhos diversos dos seus, fazem previsões futuristas pessimistas para os outros e chegam, em alguns casos, a dizer que perderão até a reencarnação caso façam isso ou aquilo. São apaixonados pela ideia de ser os proprietários da Verdade, até mesmo do que virá a acontecer, apoiando-­se, frequentemente, em teorias e produções mediúnicas de valores duvidosos ou interpretadas por suas leituras tendenciosas e bem pessoais.


— Dona Modesta — interveio Helvécio —, observei em sua resposta à Rosângela que esses mil dirigentes são os que mais sofrem desse mal. Seria certo deduzir, portanto, que a seara doutrinária tem sido atacada por essa doença moral?

— Certamente, meu jovem. Independentemente das iniciativas coletivas como a dessa noite, os esforços se multiplicam no campo individual com cada trabalhador. Uma cultura de grandeza tem estimulado esse drama ético entre os coidealistas no plano físico. Grande distância medeia entre possuir uma grande missão e ser um grande missionário. De fato, quantos foram iluminados com a Doutrina Espírita e são como a luz do mundo, contudo, temos que ser honestos e considerar que boa parcela dos irmãos tem sucumbido aos golpes sutis do orgulho, julgando-­se bem mais valorosos que realmente são para os ofícios da causa. Descuidaram de se converter a crianças em espírito. A criança é curiosa, nunca se imagina além do que é, reveste-­se de simplicidade, sem pretensões pessoais de ser a melhor, tem a alma aberta para o novo e a mente livre do que já passou e do que ainda virá, vivendo intensamente o momento presente. Não somente esses mil, mas uma infinidade de homens e mulheres da direção nos centros espiritistas se encontram nas garras da autossuficiência, fascinados por seus feitos e com sua bagagem, nutrindo pouca disposição para ser avaliados e criticados em suas ideias e ações. Gostam mesmo é de serem admirados e aprovados sem restrições, sendo que alguns adoram impressionar.


Percebendo a fala oportuna, lembrei-me das tarefas intercessoras que temos participado em companhia de Dona Modesta e Eurípedes juntamente à crosta e resolvi sugerir:

— Dona Modesta, poderia nos trazer algo sobre as obsessões nesse terreno?

— Sim, Ermance, bem lembrado! Quando a postura de nossos companheiros raia para esses despropósitos da conduta, os adversários do bem se aproveitam a largamente. Muitos e graves episódios de fascinação coletiva rondam a seara Espírita em razão desse lamentável quadro de personalismo e vaidade. Por essa razão, nosso Senhor Jesus Cristo colocou uma criança no meio dos discípulos e disse: “... se não vos converterdes e não vos fizerdes meninos, de modo algum entrareis no reino dos céus” (3). O resto da história vocês já conhecem, basta olhar os pavilhões do Hospital Esperança, lotados de dirigentes que não souberam se diminuir para que o Cristo crescesse (4). Ajudaram muitos a se renovar, mas não cuidaram tanto quanto careciam da mudança interior de si mesmos. Lembram-­se do episódio da mulher adúltera, quando Jesus pediu para atirar a pedra? Quem foi que saiu primeiro?

— Os mais velhos — respondeu de pronto Rosângela, pois tinha os versículos na ponta da língua.

— Os mais velhos saíram primeiro porque traziam mais condicionamentos e menos disposição de rasgar suas folhas de serviço perante a vida. Será preciso muita humildade dos líderes cristãos para que assumam o importante papel que lhes compete nas tarefas da Doutrina. Precisarão de muita coragem pra desapegar do que sabem, não envelhecer com suas ideias, ter a habilidade para deixar de ser repetitivos e aprender como se recicla sem se sentir desmoralizados ou menos amados. Muitos deles, para manter as aparências, abandonaram a capacidade de sentir a alegria e de ser simpáticos, tornando-­se estereótipos de rigidez, com a qual pretendem ser imponentes e expressar ideias de sábios e homens da autoridade, essa é a doença da autossuficiência espiritual.


Helvécio, desejoso de dar novo rumo ao diálogo, inferiu:

— Apesar das lutas morais, nossos irmãos são valorosos na semeadura do Cristo!

Atalhou Dona Modesta, incontinenti:

— Os esforços dessa hora só se justificam por essa razão. Eles são depositários de expectativas alvissareiras de Mais Alto. São corações que merecem o refrigério da misericórdia em face do calor das refregas que enfrentam. Ao destacar seus traços enfermiços, o fazemos com unção e desejo de amparar. O Espiritismo penetra seu terceiro ciclo de setenta anos, no qual se concretizará a maioridade das ideias espíritas (5). Nossos companheiros, se souberem se adequar, serão excelentes operários de um tempo novo. Uma geração nova regressa às fileiras carnais da humanidade para arejar o panorama de todas as expressões segmentares do orbe, interligando-ase e projetando-­as a ampliados patamares de utilidade. O movimento espírita não ficará fora desse contexto, sendo bafejado por um processo de atualização de metodologias, comportamentos, práticas e conceitos, o que ensejará uma cultura cujos traços serão o pluralismo e a lógica. Apesar desses avanços, o livre ­exame e o raciocínio científico que consolidam essas características só terão valor quando se destinarem a criar o humanismo e a ética, o afeto e o bem-estar. É tempo de renovar. Os Decretos Celestes são tufões de purificação que esterilizam todos os rincões da Terra. O fogo renovador dos Embaixadores do Bem está ajuntando o joio em molhos para queimar. As almas que cristalizarem o pensamento nos redutos do preconceito ou do dogmatismo enfrentarão sofrida crise de impotência, amargando o vexame e o desânimo. É por amor aos nossos líderes espíritas que aqui os trouxemos. Mais que nunca precisarão sedimentar em seus atos a tolerância construtiva, visão futurista, empatia com o próximo e desapego de suas realizações pessoais – quesitos essenciais para formarem o clima do diálogo e do entendimento com alteridade, as únicas vias de acesso ao paradigma do século 21, que estabelece a parceria solidária e pacífica como alvo de todas as aspirações sociais e humanitárias. Se eles se rebelarem e se fixarem na condição de apaixonados pelas suas obras, experimentarão a falência e a angústia quando aqui se aportarem. Mesmo que tenham realizado muito, talvez não terão edificado os valores essenciais para a garantia da paz consciencial no altar divino dos sentimentos elevados. Se os avisamos agora, é para que não se queixem depois.


Finda a conversa, saímos todos pensativos sobre a urgente necessidade da campanha pela humanização de nossa seara. Mais que um projeto de serviço moderno, é um convite para a retomada de posições e reciclagem da cultura. Que a humanização nos auxilie a estar acima dos papéis de heroísmo espiritual, permitindo-­nos ser gente, gostar de gente e viver como humanos falíveis sem neuroses de perfeição, sempre dispostos a crescer.

Fizemos todos os registros pensando em enviá-­los ao plano físico algum dia. Tornava-se imperioso informar ao mundo físico algo sobre a natureza das provas enfrentadas pelos dirigentes, os quais subtraíram de si mesmos a bênção de dirigir afinados com a Mensagem do Cristo.

Muito desapego e coragem serão exigidos de todos nós para que deixemos as fantasias da autossuficiência, que nos fazem sentir um pouco melhores diante de nossa inferioridade, e assumimos, enquanto é tempo, a condição psicológica prenunciada há mais de dois mil anos pelo Mestre do amor, quando assinalou:

“Mas não sereis vós assim; antes o maior entre vós seja como o menor; e quem governa como quem serve” (6).

1. Lucas, 17:20.
2. Mateus, 11:15.
3. Mateus, 18:3.
4. João, 3:30.
5. Vide mensagem “Atitude de Amor” na obra mediúnica SEARA BENDITA (diversos Espíritos), psicografada pelos médiuns Maria José C. S. Oliveira e Wanderley S. Oliveira.
6. Lucas, 22:26.

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