sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Em Que Ponto da Evolução Nos Encontramos?

Reforma Íntima Sem Martírio - Epílogo


“Segundo a ideia falsíssima de que lhe não é possível reformar a sua própria natureza, o homem se julga dispensado de empregar esforços para se corrigir dos defeitos em que de boa vontade se compraz, ou que exigiriam muita perseverança para serem extirpados”.

O Evangelho Segundo o Espiritismo – Capítulo 9 - Item 10

O Espiritismo é a Resposta do Alto em favor da humanidade desnorteada. Esclarece de onde viemos, para onde vamos e o que fazemos quando na vida terrena. Sem dúvida, Doutrina Espírita é o facho de luz que faltava aos raciocínios do homem materialista. Contudo, a sua clareza mediana, para inúmeros adeptos, não ultrapassa a condição de princípios universais com pouca utilidade no encontro das respostas a tais questões, quando focadas no terreno da individualidade.

O que significa, na intimidade da alma, cada uma dessas indagações acima mencionadas? Pergunte a um aprendiz espírita de larga vivência doutrinária se tem noções claras sobre a origem de sua reencarnação; indague-­se, de outros, se conhecem os objetivos essenciais de suas metas reencarnatórias, ou ainda consulte-os sobre o que esperam para si mesmos depois do desencarne! Quase sempre ouviremos respostas evasivas, próprias da infância espiritual que ainda assinala nossa caminhada rumo à maturidade.

De onde viemos, para onde vamos e a razão da vida no corpo quase sempre são apenas informações sem aprofundamento. Nem sempre conhecer os fundamentos filosóficos significa conscientização. Temos noções de espiritualidade, compete-­nos agora construir o caminho pessoal de espiritualização, proceder a aquisição das vivências singulares, únicas e incomparáveis, estritamente individuais, a que somos chamados na linha do crescimento e da ascensão.

Conhecemos as bases filosóficas, falta-­nos saber filosofar, aprender a pensar, tornarmo­nos agentes transformadores de nossa história, isso é educação.

Discípulos sem conta, tomados de ilusão e personalismo, acreditam ser depositários de virtude e grandeza tão somente em razão de possuírem alguns “chavões espíritas” para todas as questões que tangenciam os problemas humanos. Utilizando-­se da reencarnação, mediunidade e todo o conjunto de fundamentos filosóficos, postam-­se como decifradores circunstanciais de enigmas da vida alheia, entretanto, nem para si mesmos possuem suficiente esclarecimento na edificação da paz interior. Não se aprofundam nos dramas íntimos que carregam em si mesmos, sendo constrangidos, em inúmeras ocasiões, a desconfortável encontro com sua sombra, quando, então, são compelidos pela dor e pela frustração, diante do labirinto de seus problemas, a pensar a repensar suas lutas, aprofundando a sonda da razão nas causas ignoradas de suas reações e atitudes, pensamentos e emoções.

Renovação é trabalho lento e progressivo, muito embora avançado número de aprendizes espíritas assaltados por ilusões esteja favorecendo a morosidade ou o estacionamento em desfavor de si mesmos. Muitas crenças desprovidas de bom-senso e vigilância, nascidas de raciocínios confusos, têm servido de obstáculo ao serviço transformar nas sendas doutrinárias. Uns querem caminhar mais rápido do que podem, outros desacreditam que podem superar a si mesmos. Esses últimos, porém, os que deixaram de acreditar em si mesmos, são aqueles que Hahnemann situa em sua fala: “Segundo a ideia falsíssima de que lhe não é possível reformar sua própria natureza, o homem se julga dispensado de empregar esforços para se corrigir dos defeitos em que de boa vontade se compraz, ou que exigiriam muita perseverança para serem extirpados”.

Crenças enfermiças têm tomado conta da vida mental de muitas criaturas que se permitem acreditar não ser capazes de vencer a ­si mesmas. É assim que ouvimos, com frequência, algumas expressões de derrotismo que traduzem a desesperança de muitos corações que, em tese, já decidiram por servir a dois senhores (1), conforme a prédica evangélica. Frases como: “Estou cansado da vida, não posso mais caminhar, preciso de um tempo!”, “Não possuo qualidades suficientes para operar minha renovação!”, “Quem sou eu para chegar a esse ponto de evolução!” “Não dou conta dessas propostas, são muito exigentes!”, e outras tantas falas semelhantes que desfilam nas passarelas do desculpismo são os sinais evidentes daqueles que optaram ou estão prestes a optar pelos caminhos largos da vida, renunciando à batalha pela conquista da porta estreita das escolhas vitoriosas.

Decerto, a nenhum de nós será pedido mais do que pudermos dar. Todavia, muita acomodação e descuido tem acontecido nas fileiras educativas do Espiritismo, tão somente porque os discípulos não têm se armado de suficiente humildade para reconhecer consigo mesmos a natureza e a extensão de suas imperfeições. Muitos, apesar do conhecimento, têm preferido os leitos confortáveis da ilusão, acreditando-se melhores do que realmente são. Sob o fascínio do orgulho, sentem vergonha, medo de se expor e profunda tristeza por se verem a braços com mazelas que já gostariam de ter superado, mas que ainda muito lhes agrada. E é esse clima de profundo desconforto consciencial que a alma evolve. Premido pela tristeza das atitudes das quais já gostaria de se ver livre é que nasce o impulso para a transformação e o progresso. Contudo, é aqui também que muitos têm se entregado e desistido ante os apelos quase irresistíveis da atração para a queda.

Imprescindível elastecer noções sobre o estágio em que nos encontramos, para administrar com mais sabedoria e equilíbrio o conflito que se instala em nosso íntimo entre o que devemos fazer, o que queremos fazer e o que podemos fazer. Posições extremistas têm instaurado dores desnecessárias. Há homens e mulheres espíritas com antigos instintos animalescos que querem ser anjos do dia para a noite, nos campos de sua espiritualização. Outros, por sua vez, são detentores de larga soma de conquistas, entretanto julgam-­se incapacitados, aprisionados a avaliações negativistas que os fazem se sentir vermes rastejantes nas fileiras da vida. O resultado inevitável dessas visões distorcidas é o martírio. Ampliemos, portanto, o raio de entendimento sobre o estágio em que nos encontramos. Para se chegar a algum lugar melhor, alcançar alguma meta maior, torna-­se imperioso conscientizar-se sobre onde nos encontraremos na evolução. Sem saber onde estamos, caminharemos para lugar nenhum.

Levamos milhões de anos vividos na irracionalidade até alcançarmos a hominalidade. Como hominais, avançamos na arte de pensar, mas nem por isso será justo, no conceito cósmico, dizermo-nos civilizados, conforme nos asseveram os Nobres Guias: “...não tereis verdadeiramente o direto de dizer-vos civilizados senão quando de vossa sociedade houverdes banido os vícios que a desonram e quando viverdes como irmãos, praticando a caridade cristã. Até então, sereis apenas povos esclarecidos, que hão percorrido a primeira fase da civilização (2).

A esse respeito, o senhor Allan Kardec interrogou a Sabedoria dos Imortais:

“Uma vez no período da humanidade, conserva o Espírito traços do que era precedentemente, quer dizer: do estado em que se achava no período a que se poderia chamar ante-­humano?”

“Conforme a distância que medeie entre os dois períodos e o progresso realizado. Durante algumas gerações, pode ele conservar vestígios mais ou menos pronunciados do estado primitivo, porquanto nada se opera na Natureza por brusca transição. Há sempre anéis que ligam as extremidades da cadeia dos seres e dos acontecimentos. Aqueles vestígios, porém, se apagam com o desenvolvimento do livre ­arbítrio. Os primeiros progressos só muito lentamente se efetuam, porque ainda não têm a secundá-­los a vontade. Vão em progressão mais rápida, à medida que o Espírito adquire perfeita consciência de si mesmo” (3).

Na questão em epígrafe consta: “Os primeiros progressos só muito lentamente se efetuam, porque ainda não têm a secundá-­los a vontade. Vão em progressão mais rápida, à medida que o Espírito adquire perfeita consciência de si mesmo”. Imprescindível ao nosso aperfeiçoamento moral será saber em que estágio nos situamos, a fim de não tropeçarmos em velhas ilusões de grandeza. Em verdade, apenas iniciamos o serviço de autoaprimoramento. O trajeto das poucas conquistas que amealhamos foi realizado, preponderantemente, na horizontalidade dos valores cognitivos. Somente agora damos os primeiros passos para a verticalização em direção às habilidades da consciência de nós mesmos no terreno dos sentimentos. Precisamos constatar que nada mais somos, por enquanto, que criaturas que ensaiam os primeiros passos para sair do primitivismo moral rumo à humanização ou hominização integral.

Apesar de já peregrinarmos há milênios no reino hominal, ainda não nos fizemos legítimos proprietários da Herança Paternal a nós confiada. Não será impróprio dizer que somos “meio humanizados”.

Contudo, apesar dessa radiografia de nosso estágio evolutivo, existe muita vertigem provocada pelo orgulho em razão de nossa pouca competência em nos autoavaliar. Dentre elas, como aquela que se pode assinalar como sendo acentuadamente prejudicial aos ideais de transformação interior, vamos encontrar o desejo infantil, que acompanha muitos, de tomar de assalto a angelitude instantânea.

Pois se mal deflagramos o labor de assumir a condição hominal, como agir como anjos?

Entre a angelitude e a hominalidade existe a semeadura fértil da humanização. Carecemos, primeiramente, nos consolidar como seres humanizados e descortinar todas as conquistas próprias dessa etapa para, então, posteriormente, galgar novos patamares, naturalmente.

Desejando santificação, muitos aprendizes da Nova Revelação descuidam de pequenas lições educativas da ascensão passo a passo, vivendo uma reforma idealizada e não sentida. Como conceber almas educadas na mensagem da Boa Nova Espírita, pois, algumas vezes, a criatura afeiçoada às lições doutrinárias não é capaz de utilizar com responsabilidade e correção um banheiro higiênico no próprio lar?

O melhor e mais ajustado sentido para o trabalho interior de melhoria pode ser compreendido como a conquista da consciência de si mesmo, a aquisição do patrimônio da divindade que dormita no imo de nós próprios desde os primórdios da criação. Menos do que vencer as sombras interiores, o desafio da reforma espiritual requer a capacidade de criar o bem em nós pela fixação dos valores novos. Mais que evitar o mal, é necessário saber desenvolver habilidades eternas.

Reforma íntima é o serviço gradativo da instauração das virtudes celestes, a aquisição da consciência desse tesouro, o qual todos somos convocados a tomar posse perante a lei natural do progresso.

O mal será transformado em bem por seus opostos. O medo será renovado aprendendo a exercer coragem, a inveja sofrerá mutação pelo exercício da abnegação, a avareza será metamorfoseada à medida em que nos habilitarmos ao exercício do desprendimento, a irritação será convertida pela aquisição da serenidade.

Evitemos conceber mudança interior sob enfoque restrito de repressão. Medo contido pode ser trauma para o futuro; inveja reprimida pode salientar-se como frustração somatizada; avareza apenas dominada pode caminhar para o desânimo; irritação somente controlada pode caminhar para a raiva.

Contenção é disciplina. Aquisição de novas qualidades é educação.

Disciplinar é meio, educação é a grande meta.

Estamos aprendendo a descobrir nossas sombras, essa é uma etapa do processo. Convém-nos, portanto, laborar pela outra etapa, não menos importante: a de aprender a fazer luz e construir a harmonia interior – eis um bom motivo para nos livrarmos do martírio.


1. O Evangelho Segundo o Espiritismo – Capítulo 16.
2. O Livro dos Espíritos – Questão 793.
3. O Livro dos Espíritos – Questão 609.


terça-feira, 20 de setembro de 2016

Conclave de Líderes - Parte 2

Reforma Íntima Sem Martírio - Capítulo 30

(CONTINUAÇÃO de "Conclave de Líderes - Parte 1")



Após os cumprimentos finais, vimos que extensa fila de cooperadores formava um corredor indicando por onde regressariam os que estavam emancipados do corpo. Devido à condição de semitorpor, não ofereciam condições favoráveis ao diálogo, a não ser um ou outro que já demonstrava melhor habilidade nas incursões noturnas fora da vida corporal. Desfeita rapidamente aquela aglomeração, cada um retornava a seus afazeres. Rosângela, Sérgio e Pedro Helvécio, jovens com os quais sempre contávamos nas atividades do Hospital Esperança, solicitaram-­nos alguns momentos de prosa com Dona Modesta. Para nossa surpresa, quando percebemos, ela própria espontaneamente deslocava-­se da mesa onde se encontrava em nossa direção, a nos dizer:

— Teremos alcançado nossos nobres objetivos, Ermance?

— Creio que sim, Dona Modesta. O ambiente estava apropriado e, no que pude avaliar, as disposições psicológicas de nossos irmãos com a transposição do milênio, de alguma forma, infundiam-­lhes um ânimo especial para que arquivem desejavelmente a mensagem em seus corações. Precisaremos de tempo para aferir com exatidão as promessas deste momento, aguardemos. No entanto, Dona Modesta, nossos jovens, como de costume, ficaram muito motivados e querem experimentar sua vivência com algumas indagações.

— Estou à disposição.

Com sua natural curiosidade, Rosângela foi a primeira a interrogar:


— Notei certa inquietude entre os participantes nesse “estado de graça” fora da matéria. Em alguns casos, era visível o desagrado com algumas falas do professor Cícero. Como pode isso ocorrer entre os “mil escolhidos pelo Senhor” para ouvir essa preleção? Não deveriam estar alegres e demonstrado mais satisfação com a ocasião em razão da grandeza que possuem como líderes religiosos?

Ela ainda externava suas questões tomando por base a recém-­finda experiência reencarnatória nas fileiras do Protestantismo. Suas expressões ainda deixavam claras suas visões evangélicas. Seu desejo de aprender, no entanto, era enorme.

— Rosângela, minha jovem, não são “escolhidos do Senhor” e nem estão em “estado de graça”. São almas que lutam tenazmente com suas tendências. De fato, não deveriam estagiar ainda nesse psiquismo de desagrado quando ouviram as claras advertências do professor. Todavia, essas criaturas que aqui foram trazidas são os mil líderes espíritas encarnados que mais padecem de um terrível mal, o qual assola a maioria das fileiras de serviço do Cristo nas expressões religiosas de todos os tempos.

— E que mal é esse, Dona Modesta? — atalhou Rosângela, ansiosa.


— A doença da autossuficiência espiritual ou o fascínio com a importância grandiosa que muitos corações supõem possuir nos serviços de Jesus. Os amigos espíritas, especialmente os mais experimentados na arte de liderar, precisam vigiar com muita cautela o encanto que têm devotado a suas folhas de serviço. Bastas vezes confundem quantidade de tarefas e realizações com ascensão evolutiva, como se fizessem carreira nos ofícios de sua espiritualização. Ocorre que muitos corações de ideal, em todas as atividades doutrinárias, têm passado pelas tarefas sem se educarem por meio delas, e quanto mais expressivas elas são, mais aumentam os riscos de vaidade e ilusão. Temos por aqui vastos pavilhões de médiuns, divulgadores, escritores, evangelizadores da juventude, presidentes de centros espíritas, dispensadores da caridade pública, todos abençoados com as luzes da Doutrina Espírita, entretanto, sem conquistarem sua luz própria. Sufocaram-­se no orgulho com a cultura e a experiência doutrinárias e negligenciaram o engrandecimento moral de si mesmos pela reeducação dos hábitos e da aquisição de virtudes eternas. É um engano milenar da ilusão humana, ainda afeiçoada a vantagens exteriores sem a consolidação dos ensinos Cristãos no próprio coração. Como disse o Senhor: “O Reino de Deus não vem com aparência exterior” (1).

Sérgio, não contendo seu desejo de aprender e participar, externou:

— Dona Modesta, qual a principal imperfeição desses líderes que estaria redundando em problemas para os ofícios da seara?


— São excessivamente controladores por julgarem enxergar mais. Carregam consigo uma das mais antigas mazelas humanas: o desejo de serem servidos – uma faceta emocional sutil do desejo de serem amados ou da necessidade de serem queridos e aprovados pelos outros, a qual termina por ser transferida para o costume de serem bajulados e incensados pelos que os rodeiam. Esse velho monstro da alma surge sorrateiramente como um hábito doentio de ordenar e comandar pessoas, já experimentado em muitas e muitas vidas sucessivas, uma forma de satisfação do egoísmo humano. Considerando o vício de prestígio que carregam esses corações, são intensamente atraídos para posturas de destaque. Adoram os cargos e o poder e, embora possamos encontrá-­los também distantes dos títulos, estes são por eles possuídos no campo psicológico. São criaturas que realizam muito e têm significativa visão de conjunto das necessidades do movimento social em torno das ideias espíritas, apenas pecando pelo orgulho em que se inspiram por suporem possuir todas as respostas e caminhos para todas as necessidades e percalços da seara. Isso os torna úteis em certas situações e extremamente rejeitados pela arrogância em outras, quando excedem na atitude com sua suposta sapiência e grandeza. Verdadeiramente, nossos irmãos que aqui estiveram guardam conquistas apreciáveis, porém, nem sempre conseguem deixar de se enganar pelo personalismo que ainda carregam. Uma vez nessa postura, fica fácil reconhecer-­lhes as imperfeições prejudiciais ao serviço da obra cristã, porque não ouvem opiniões por julgarem ter as melhores, guardam convicções pessoais exacerbadas, não dão atenção às críticas, quase sempre decidem sozinhos, tornam-­se poucos afetivos, muito racionais e adoram mandar sem fazer, ordenar sem cumprir. O conjunto dessas características os promove a uma das condições mais inaceitáveis na atualidade para qualquer grupamento que se proponha a crescer espiritualmente: o autoritarismo.


— Mas, Dona Modesta — continuou indagando Sérgio —, o que lhes tem faltado para agirem com essa atitude de supremacia?

— Visão imortalista, meu filho. Lembro-­me como fosse hoje que, quando encarnada, o Espiritismo prático ou a mediunidade espontânea era de uma riqueza incomparável, conduzindo os homens a uma visão da vida afinada com a ética de imortalidade. Hoje, há uma priorização do assistencialismo e da preservação filosófica, na qual a grande maiorias dos núcleos distanciou-­se das vivências de intercâmbio sadias e educativas nos horizontes da mediunidade santificada. Falta-lhes o Espiritismo com espíritos, na expressão de Yvonne do Amaral Pereira. O exercício mediúnico sério tem sido escasso nas casas do Espiritismo, e o que prepondera é o consolo nas sessões de intercâmbio. Embora com seus méritos, a transcendência da faculdade que liga os mundos não tem se convertido em chances para que os benfeitores do além possam transmitir sua experiência e participar com mais assiduidade das vivências dos homens. Não foram poucas as vezes que Bezerra de Menezes teve  de contar com Centros de Umbanda e Candomblé, nos quais se encontram muitos corações afeiçoados ao amor, para fazer seus ditados ou operar suas curas. Lá, a espontaneidade e o desejo de servir muitas vezes sobressaem como qualidades indiscutíveis em relação a muitos centros doutrinários do Espiritismo, os quais têm fechado as portas mentais para o trânsito dos bons espíritos. Tem havido um engessamento voluntário do exercício mediúnico, surgido a partir da tese animista, em meados do século passado. Sem visão de vida imortal, acomodam-­se e deixam de descobrir horizontes novos. Estacionam na paralisia do pensamento em conceitos e não se permitem reciclar práticas. Muitos, além disso, infelizmente, perderam o gosto de aprender, esbaldando-­se em seus histórico de serviços, sem apresentar algo de útil para os reclames do momento atual.


Pedro Helvécio, sempre muito paciente, vendo o rumo da conversação, perguntou com sabedoria:

— Que objetiva a tarefa dessa noite, em que foram trazidos para ouvir essa linha de raciocínio sobre a reforma íntima?

— Em fazerem uma autoavaliação. Notem que o professor não lhes chamou a atenção diretamente em nada, porque senão regressariam ao corpo imediatamente com forte indisposição emocional. Nesse caso, ao recobrarem a lucidez física, alegariam que estiveram em tarefas de auxílio nas regiões inferiores. O professor, com os cuidados que exigiam o momento, tangenciou os problemas morais de nossos irmãos conclamando-­os ao tratamento. Não destacou suas doenças, e sim o remédio. Ao convocá-­los a um projeto de humanização, concede-­lhes a chave dos seus problemas porque terão que se igualar, terão de se fazer gente comum e despir-se da aura de santidade que tanto lhes apraz. Os líderes espíritas, quase sem exceções, asilam enorme sentimento de serem úteis à causa, mas se tornaram, como é natural acontecer em nosso estágio evolutivo, vítimas de si mesmos na medida em que usaram sua habilidade de gerir para interferir. Fazem uma liderança a gosto pessoal, e não conforme os imperativos do Evangelho e da pedagogia moderna...

— Quais são as chances de sucesso da iniciativa de trazê-­los aqui?

— Apesar do êxito deste momento, Helvécio, as chances de que nossos irmãos aproveitem a ocasião tanto quanto necessitam são muito reduzidas. Eles já perderam o gosto de ouvir, adoram mesmo é falar muito. Seus ouvidos não estão conforme a assertiva evangélica, ouvidos de ouvir (2). Muitos, em suas crises de autossuficiência, em verdade, zombam, inconscientemente, da inexperiência alheia expedindo prognósticos e avaliações sem considerar o valor que possuem para a tarefa do Cristo. Quando alguns tomam caminhos diversos dos seus, fazem previsões futuristas pessimistas para os outros e chegam, em alguns casos, a dizer que perderão até a reencarnação caso façam isso ou aquilo. São apaixonados pela ideia de ser os proprietários da Verdade, até mesmo do que virá a acontecer, apoiando-­se, frequentemente, em teorias e produções mediúnicas de valores duvidosos ou interpretadas por suas leituras tendenciosas e bem pessoais.


— Dona Modesta — interveio Helvécio —, observei em sua resposta à Rosângela que esses mil dirigentes são os que mais sofrem desse mal. Seria certo deduzir, portanto, que a seara doutrinária tem sido atacada por essa doença moral?

— Certamente, meu jovem. Independentemente das iniciativas coletivas como a dessa noite, os esforços se multiplicam no campo individual com cada trabalhador. Uma cultura de grandeza tem estimulado esse drama ético entre os coidealistas no plano físico. Grande distância medeia entre possuir uma grande missão e ser um grande missionário. De fato, quantos foram iluminados com a Doutrina Espírita e são como a luz do mundo, contudo, temos que ser honestos e considerar que boa parcela dos irmãos tem sucumbido aos golpes sutis do orgulho, julgando-­se bem mais valorosos que realmente são para os ofícios da causa. Descuidaram de se converter a crianças em espírito. A criança é curiosa, nunca se imagina além do que é, reveste-­se de simplicidade, sem pretensões pessoais de ser a melhor, tem a alma aberta para o novo e a mente livre do que já passou e do que ainda virá, vivendo intensamente o momento presente. Não somente esses mil, mas uma infinidade de homens e mulheres da direção nos centros espiritistas se encontram nas garras da autossuficiência, fascinados por seus feitos e com sua bagagem, nutrindo pouca disposição para ser avaliados e criticados em suas ideias e ações. Gostam mesmo é de serem admirados e aprovados sem restrições, sendo que alguns adoram impressionar.


Percebendo a fala oportuna, lembrei-me das tarefas intercessoras que temos participado em companhia de Dona Modesta e Eurípedes juntamente à crosta e resolvi sugerir:

— Dona Modesta, poderia nos trazer algo sobre as obsessões nesse terreno?

— Sim, Ermance, bem lembrado! Quando a postura de nossos companheiros raia para esses despropósitos da conduta, os adversários do bem se aproveitam a largamente. Muitos e graves episódios de fascinação coletiva rondam a seara Espírita em razão desse lamentável quadro de personalismo e vaidade. Por essa razão, nosso Senhor Jesus Cristo colocou uma criança no meio dos discípulos e disse: “... se não vos converterdes e não vos fizerdes meninos, de modo algum entrareis no reino dos céus” (3). O resto da história vocês já conhecem, basta olhar os pavilhões do Hospital Esperança, lotados de dirigentes que não souberam se diminuir para que o Cristo crescesse (4). Ajudaram muitos a se renovar, mas não cuidaram tanto quanto careciam da mudança interior de si mesmos. Lembram-­se do episódio da mulher adúltera, quando Jesus pediu para atirar a pedra? Quem foi que saiu primeiro?

— Os mais velhos — respondeu de pronto Rosângela, pois tinha os versículos na ponta da língua.

— Os mais velhos saíram primeiro porque traziam mais condicionamentos e menos disposição de rasgar suas folhas de serviço perante a vida. Será preciso muita humildade dos líderes cristãos para que assumam o importante papel que lhes compete nas tarefas da Doutrina. Precisarão de muita coragem pra desapegar do que sabem, não envelhecer com suas ideias, ter a habilidade para deixar de ser repetitivos e aprender como se recicla sem se sentir desmoralizados ou menos amados. Muitos deles, para manter as aparências, abandonaram a capacidade de sentir a alegria e de ser simpáticos, tornando-­se estereótipos de rigidez, com a qual pretendem ser imponentes e expressar ideias de sábios e homens da autoridade, essa é a doença da autossuficiência espiritual.


Helvécio, desejoso de dar novo rumo ao diálogo, inferiu:

— Apesar das lutas morais, nossos irmãos são valorosos na semeadura do Cristo!

Atalhou Dona Modesta, incontinenti:

— Os esforços dessa hora só se justificam por essa razão. Eles são depositários de expectativas alvissareiras de Mais Alto. São corações que merecem o refrigério da misericórdia em face do calor das refregas que enfrentam. Ao destacar seus traços enfermiços, o fazemos com unção e desejo de amparar. O Espiritismo penetra seu terceiro ciclo de setenta anos, no qual se concretizará a maioridade das ideias espíritas (5). Nossos companheiros, se souberem se adequar, serão excelentes operários de um tempo novo. Uma geração nova regressa às fileiras carnais da humanidade para arejar o panorama de todas as expressões segmentares do orbe, interligando-ase e projetando-­as a ampliados patamares de utilidade. O movimento espírita não ficará fora desse contexto, sendo bafejado por um processo de atualização de metodologias, comportamentos, práticas e conceitos, o que ensejará uma cultura cujos traços serão o pluralismo e a lógica. Apesar desses avanços, o livre ­exame e o raciocínio científico que consolidam essas características só terão valor quando se destinarem a criar o humanismo e a ética, o afeto e o bem-estar. É tempo de renovar. Os Decretos Celestes são tufões de purificação que esterilizam todos os rincões da Terra. O fogo renovador dos Embaixadores do Bem está ajuntando o joio em molhos para queimar. As almas que cristalizarem o pensamento nos redutos do preconceito ou do dogmatismo enfrentarão sofrida crise de impotência, amargando o vexame e o desânimo. É por amor aos nossos líderes espíritas que aqui os trouxemos. Mais que nunca precisarão sedimentar em seus atos a tolerância construtiva, visão futurista, empatia com o próximo e desapego de suas realizações pessoais – quesitos essenciais para formarem o clima do diálogo e do entendimento com alteridade, as únicas vias de acesso ao paradigma do século 21, que estabelece a parceria solidária e pacífica como alvo de todas as aspirações sociais e humanitárias. Se eles se rebelarem e se fixarem na condição de apaixonados pelas suas obras, experimentarão a falência e a angústia quando aqui se aportarem. Mesmo que tenham realizado muito, talvez não terão edificado os valores essenciais para a garantia da paz consciencial no altar divino dos sentimentos elevados. Se os avisamos agora, é para que não se queixem depois.


Finda a conversa, saímos todos pensativos sobre a urgente necessidade da campanha pela humanização de nossa seara. Mais que um projeto de serviço moderno, é um convite para a retomada de posições e reciclagem da cultura. Que a humanização nos auxilie a estar acima dos papéis de heroísmo espiritual, permitindo-­nos ser gente, gostar de gente e viver como humanos falíveis sem neuroses de perfeição, sempre dispostos a crescer.

Fizemos todos os registros pensando em enviá-­los ao plano físico algum dia. Tornava-se imperioso informar ao mundo físico algo sobre a natureza das provas enfrentadas pelos dirigentes, os quais subtraíram de si mesmos a bênção de dirigir afinados com a Mensagem do Cristo.

Muito desapego e coragem serão exigidos de todos nós para que deixemos as fantasias da autossuficiência, que nos fazem sentir um pouco melhores diante de nossa inferioridade, e assumimos, enquanto é tempo, a condição psicológica prenunciada há mais de dois mil anos pelo Mestre do amor, quando assinalou:

“Mas não sereis vós assim; antes o maior entre vós seja como o menor; e quem governa como quem serve” (6).

1. Lucas, 17:20.
2. Mateus, 11:15.
3. Mateus, 18:3.
4. João, 3:30.
5. Vide mensagem “Atitude de Amor” na obra mediúnica SEARA BENDITA (diversos Espíritos), psicografada pelos médiuns Maria José C. S. Oliveira e Wanderley S. Oliveira.
6. Lucas, 22:26.

sábado, 10 de setembro de 2016

Conclave de Líderes - Parte 1

Reforma Íntima Sem Martírio - Capítulo 30


“Expulsai da Terra o egoísmo para que ela possa subir na escala dos mundos, porquanto já é tempo de a Humanidade envergar sua veste viril, para o que cumpre que primeiramente o expilais dos vossos corações.”

O Evangelho Segundo o Espiritismo – Capítulo 11 - Item 11


Faltavam apenas dez minutos para as duas horas. A madrugada revestia-­se de intenso trabalho. Era a última semana do segundo milênio da era cristã. As expectativas criavam um clima psicológico na Terra de rara amplitude – uma virada de ano na qual as esperanças se renovavam coroadas de júbilo e fé.

Cumprindo mais uma de nossas programações no Hospital Esperança, reunimos influente grupo encarnado de pouco mais de mil formadores de opinião no movimento espírita. Trouxemo-­los para uma breve e oportuna advertência. Radialistas, unificadores, médiuns, escritores, oradores, dirigentes, apresentadores, jornalistas, expositores, diretores, estudiosos e muitos presidentes de centro espírita estavam sendo devidamente preparados havia quase três dias para que pudessem cooperar com o desligamento perispiritual e ampliassem sua lucidez quanto ao tentame.

O professor Cícero Pereira foi encarregado de fazer os comentários em nome de Bezerra de Menezes e Eurípedes Barsanulfo.


Observávamos a chegada de cada um dos membros, todos em estado de emancipação e acompanhados de pelo menos três cooperadores que se revezavam em variadas tarefas junto a cada um deles. Alguns ofereciam dificuldades até para se assentar nos lugares a eles reservados no salão, contudo, no horário previsto, tudo era calmaria e prontidão para o serviço da noite.

Aos dois minutos para as duas horas entraram Eurípedes e Dona Maria Modesto Cravo ladeando o amado Bezerra e o professor.

Em brevíssima e sentida prece, Eurípedes ordenou o iniciar dos trabalhos. Dona Modesta tomou de um microfone para explicar o objetivo da ocasião, dizendo:

— Amigos, paz e esperança a todos. Nosso tempo é curto em razão das condições especialíssimas a que foram aqui trazidos pra guardar registros nítidos e úteis ao regressarem ao corpo. Portanto, que fiquem claros nossos objetivos nesse encontro. O momento psicológico nessa última semana do milênio enseja sentimentos elevados em relação ao futuro. A mensagem que vos queremos endereçar diz respeito à necessidade imperiosa de propagarem uma noção mais realista e estimuladora do processo de crescimento espiritual entre vós. Sem fé nos esforços e sem a crença sustentável nos ideais de renovação interior, a caminhada do discípulo do Cristo fica entorpecida e fragilizada. Atendendo aos ditames proclamados por Bezerra de Menezes em sua magistral palestra “Atitude de Amor” (1), convém-­nos tecer considerações sobre o coração dos temas morais do Espiritismo: a reforma íntima. Abram a coração e dilatem o raciocínio para ouvir a mensagem de Cícero Pereira e, em retornando ao corpo, arregimentem energias na difusão de uma campanha sem precedentes em torno do tema. Por ora, nos comprometemos em lhes enviar no futuro uma resenha desse nosso encontro pela via da mediunidade, a fim de acordarem vossas lembranças. Vamos ao labor.

Dona Modesta fez um sinal ao professor, o qual assumiu a tribuna:

— Declinarei de quaisquer detalhes que nos desaproximem do tema. Desejo que todos enriqueçam as almas nesse conclave com a paz e a esperança.

“Constatamos um ascendente número de adeptos que tem desistido dos ideais de melhoria em razão do ônus voluntário que carreiam para si mesmos ao conceberem a reforma íntima como um compromisso de angelitude imediata. O momento exige autocrítica e vigilância. Além do ônus do martírio a que se impõem, ilusões lamentáveis têm povoado a mente de muitos espíritas sobre o porvir que os espera para além dos muros da morte, em razão dessa angelitude de adorno. Aqui mesmo, nesse hospital, enfrentamos situações severas da parte de homens e mulheres, os quais foram agraciados com o conhecimento e o trabalho nos campos educativos da seara espírita e que, a despeito de suas honrosas fichas de prestação de serviços, encontram-­se envergonhados uns e atormentados outros, porque descuidaram do erguimento dos valores eternos na sua intimidade. Muitos deles, aliás, não esqueceram a reforma íntima, mas não souberam edificá-­la.


“Os espíritas que desencarnam em melhores condições trazem em comum a persistência que nutriram no idealismo superior até o último dia em seus corpos físicos. Essa, porém, não tem sido a marca moral da maioria, que, variadas vezes, tem se equivocado com padrões de conduta espírita consagrada nos círculos da doutrina entre os homens. Tais equívocos existem porque os modelos erigidos como referências, quase sempre, conduzem o discípulo à acomodação e ao desculpismo, que produzem o desleixo na avaliação íntima das causas de suas imperfeições. Nessa passarela de perfis de comportamento socialmente aceitos dentro da Seara, a criatura sente-­se excluída e falida quando não consegue transpor os umbrais de seus impulsos, nem sempre conhecidos de si mesma, para atender aos quesitos que a inserem na condição de verdadeiro espírita, conforme os critérios espontaneamente aceitos pela coletividade dos seguidores. A partir de então, se não conta com a fraternidade e a compreensão alheia, desiste dos seus ideais ante os assédios da dor psicológica decorrente da autocobrança.


“Somente sentindo-se aceita como é nos grupos de sua participação é que a criatura encontra motivação para se burilar nos campos do espírito. Essa não tem sido a realidade de muitos grupamentos que, lamentavelmente, em muitas ocasiões, ao invés de cumprir a aspiração de serem Casas de Consolo e Verdade encarceram-se nos desfiladeiros de templos de hipocrisia e intransigência.

“A reforma íntima não pode mais se circunscrever a mero artigo de discurso, para que haja um sentido evangélico nas ideias espirituais que construímos na tarefa da comunicação de nossos princípios. Precisamos examiná-la minuciosamente com mais clareza para que a imaginação humana, limitada por ilusões, não a converta em fórmula salvacionista, mensurando-a por esses padrões de pouco ou nenhum valor moral.

“Tivemos três fases bem marcantes e entrelaçadas no movimento humano em torno das ideias espíritas: o fenômeno, a caridade seguida da difusão e, agora, mais que nunca, a interiorização. Entramos no período da maioridade, preparando-nos para a aquisição de valores incorruptíveis. Nossa meta é o Espiritismo por dentro, o intercâmbio de vivências morais à luz das bases que consolidam a lógica do pensamento espírita. Na etapa da caridade em que predominou a ocupação com o próximo, muitos corações se inspiraram nos conceitos doutrinários para transferir a outras existências a continuidade de seu progresso na melhoria espiritual. Raramente ouvimos esse enfoque descuidado nos dias atuais. Por outro lado, uma nova postura extremista desponta-­se com vigor: a santidade instantânea. Se ontem havia um descuido em razão de fugas, hoje temos uma nova invigilância por causa da ilusão em saltos evolutivos.


“Inspirados em padrões de comportamentos rígidos da religião organizada, muitos discípulos da boa nova espírita asseveram seguir os exemplos de Jesus e Kardec, guardando cenho carregado e distância das atitudes espontâneas de alegria e afeto, alegando seguir as orientações doutrinárias, como se houvesse um estilo exterior e predefinido de reconhecimento dos espíritas. A grandes malefícios tem levado essa cultura de santificação de adorno por impedir as criaturas a uma incursão nas profundezas de si mesmas, objetivando identificar as necessidades individuais de aprimoramento. Cada Espírito tem imperfeições próprias, únicas, e, também, qualidades em diversificada intensidade e características, não sendo útil nem sensata a adoção de um elenco de convenções religiosas de fora para dentro para serem seguidas.


“Espiritismo é a mensagem da Boa Nova para os tempos atuais. Boa Nova quer dizer boa notícia, boa novidade, e o principal sentimento de quem comunica uma boa notícia é a alegria. Por mais avançadas sejam as conquistas humanas, o Evangelho continua sendo a Grande Novidade desprezada pelos homens para que reine a paz e a equidade social, o caminho esquecido e protelado por se tratar da porta ­estreita que exige conduta austera e vigilância permanente. Boa conduta e vigilância, no entanto, não significam que se deva cobrir de tristeza e carranca e pretexto de ser responsável e íntegro.

“Trabalhamos para que o movimento espírita se alinhe com os demais movimentos humanos que colaboram para o apressamento da regeneração. A despeito de suas valorosas conquistas, não poderá triunfar ante os desafios sociais da atualidade sem assumir o compromisso de projetos orientados para o crescimento pessoal. A solidez da moral que sustenta os fundamentos do corpo doutrinário espírita constituirá o grande diferencial entre todos os métodos até hoje utilizados pela religião para conscientizar o homem. Fechar os olhos para essa necessidade poderá prolongar e fortalecer as primeiras sequelas palpáveis do processo de institucionalização, o qual tem inspirado nocivos episódios de estagnação e dogmatismo nas concepções e nas atitudes no seio desse movimento”.


Nesse trecho da palestra, o clima do início sofreu significativa alteração. A platéia mantinha-­se atenta aos comentários do palestrante. Alguns companheiros ofereciam certa dificuldade para se manter aquietados, o que logo era contornado pelos atentos cooperadores que se espalhavam aos milhares em funções previamente definidas para o encontro.

Pelo olhar do professor para a mesa onde se assentavam Eurípedes, Dona Modesta e Bezerra, sentimos que abordaria delicada questão em sua fala. E como se buscasse aval, assim continuou:

— Motivemos os núcleos espiritistas a uma campanha de esforços pela implantação da noção de escola do espírito, erguendo trincheiras seguras e generosas para o entendimento mais consistente do ato de educar a si mesmo. Mais do que Espiritismo curricular, nobre em seus fundamentos universais, necessitamos de esperança e consolo na alma para estabelecermos um clima de otimismo e entendimento na superação dos percalços do caminho de transformações íntimas a que fomos todos convocados, integrando nossa ação, definitivamente, com todos os paradigmas descerrados pela proposta cósmica da Doutrina Espírita.

“Nessa escola da alma pensemos os valores humanos como metas possíveis, e não como virtudes angelicais, as quais permanecemos muito distantes da possibilidade de experimentar. Iniciemos claramente uma cultura de autoestima e fé em nossas potencialidades, sem receio dos tenebrosos assaltos da vaidade e do orgulho. A mensagem da Boa Nova é para todos os que desejem adotá-la como roteiro de vida. Conceber as propostas Sábias de Jesus como um convite para um futuro longínquo é agasalhar desânimo e desvalor para com nossas habilidades latentes. O Mestre não nos traria um convite ao qual não tivéssemos condições de responder. Mesmo passados tantos séculos depois de Seu exuberante Ministério de Amor, Ele nos aguarda confiantes na decisão de segui-­Lo.

“A ausência de horizontes novos sobre velhas lutas, enfrentadas pelos discípulos espíritas no campo íntimo, tem lhes desmotivado em relação aos nobres ideais de crescimento. Buscam respostas e caminhos, mas eis que os vigorosos reflexos da esteira evolutiva teimam em se apresentar, provocando desgosto e baixa autoestima, subtraindo o vigor da sinceridade nos compromissos de melhoria assumidos perante a consciência.

“Dura realidade precisa ser avaliada em favor de nosso próprio bem: mais do que práticas e instituições, é necessário preparar o seguidor da doutrina para aprender a gostar de relacionamentos. Com raríssimas exceções, o espírita, assim como a maioria dos homens reencarnados, não aprendeu a gostar das pessoas com as quais convive, descobrir-­lhes as virtudes, encantar-­se com suas diferenças, cultivar a empatia. Muitos agem como se pudessem se beneficiar das práticas que tanto amam sem ter de suportar o peso das imperfeições alheias – o que muito lhes agradaria. Ama-­se, muitas vezes, com mais alegria, o Centro, suas dependências e tarefas do que aqueles que nele transitam. Há companheiros com mais cuidado com seus livros espíritas que com os amigos de tarefa.”


Novamente constatou-se a inquietude entre os ouvintes. Algo lhes desagradava profundamente. O professor não se fazia surpreso e prosseguia sem temor:

— No que diz respeito aos núcleos espíritas, especialmente, convenhamos que o excesso normativo tem levado a prejuízos incalculáveis na criação de relações autênticas e educativas. Necessário resgatar o foco central do Espiritismo: o amor entre os homens antes de ritos e práticas, os quais não passam de recursos didáticos de aprendizado e enriquecimento das vivências.

“A proposta do amor contida no Espiritismo cristão não deve ser circunscrita a meros discursos estéticos na tribuna, tampouco a ocasionais doações de fins de semana no tempo que sobra às tarefas caritativas. O lar e a vizinhança, a rua e a empresa, a escola e as instituições humanas de recreação, os grupos sociais em geral aguardam-­nos na condição de sal da terra para operar a inadiável metamorfose espiritual da regeneração.


“Consolidemos projetos de humanização nas agremiações da Terra em favor de dias melhores e mais proveitosos, como nos convoca o amado Bezerra de Menezes à vigorosa aplicação de um programa de valores humanos nos centros espíritas (2). O espírita passou a ser um conhecedor da vida espiritual e suas leis, mas continua ignorante sobre si mesmo, porque adota estudos sistematizados de Espiritismo, mas permanece um vácuo nos estudos sistematizados sobre si mesmo, o autoconhecimento. Temos aqui mesmo, no Hospital Esperança, muitos devotos que detinham toda a história do Espiritismo na memória, conheciam bem todos os clássicos da Doutrina, contudo, não se esforçavam para estampar um sorriso aos companheiros de grupo”.

Após essa fala grave, houve um burburinho geral. Curiosidade e certa dose de desconforto pairaram no ar. Todavia, a medida em curso não comportava maiores divagações diante do estado de sonambulismo em que se encontravam os encarnados. Embora alguns tenham ensaiado algumas indagações e questionamentos, foram contidos por seus condutores. Qualquer estado de exaltação poderia pôr a perder a incomparável ocasião. Refeito o ambiente, o professor, com mais ênfase e tomado de abundante afetividade, pronunciou-­se como a saber a natureza das dúvidas que não chegaram a serem externadas, dessa forma:

— Ninguém, em sã consciência, poderá negar que velhas fórmulas religiosas foram copiadas para a estrutura de nossa seara, estimulando o retorno de fracassadas vivências da alma no campo do egoísmo.

“Religião sem religiosidade é uma separação milenar em nossas ações!

“Temos projetos sociais religiosos, entretanto, são escassos os nossos projetos pedagógicos de religiosidade. A ação social espírita, tão rica de iniciativas, quase sempre tem priorizado o ato de solidariedade distante do seu caráter educativo, esbarrando, vez que outra, nos 'recifes' dos movimentos religiosos de massa, encalhando inúmeras vezes a embarcação do raciocínio nos excessos da fé de superfície. Nossas ações sociais estão cada vez mais contaminadas pela linguagem dos significados, isto é, pela concepção interpretativa do Espiritismo centrada no discurso salvacionista, sustentando posturas de ufanismo ideológico e ausência de diálogo, em oposição aos princípios de fraternidade acolhedora e interatividade pacífica, os quais emergem da filosofia espírita e que deveriam florescer em relações de paz e inclusão. Assim expressamos com rigor, para que não estimulem em seus trabalhos de formação de opinião as expectativas de angelitude após a morte corporal. Por mais nobres sejam as obras que ergamos, por mais devoção a elas ofereçamos, torna-­se imperioso o desapego de fantasias de merecimento em torno de supostas honrarias no reino dos espíritos. Adotemos a condição de aprendizes e servos, pelo bem de nossa paz. Nossas atividades, por mais nobres que sejam, não passam de frutos da boa ­vontade de quem está recomeçando.


“A visão religiosa com a qual fomos educados fez do erro o pecado e da melhoria da alma uma virtude para almas seletas. Jesus, como modelo e guia, tem sido interpretado como uma meta distante e para poucos, incentivando a mentalidade da estagnação.

“Ao longo dos milênios de experimentos evolutivos, o homem instintivamente praticou a adoração ao Ser Supremo através das mais variadas formas. Desde os horizontes da racionalidade primitiva até os antecedentes da religião organizada, foram muitas as conquistas humanas cujo fim foi reverenciar esse Ser Onipotente que hoje chamamos Criador e Pai. Semelhantes vivências arquivadas na alma passaram a constituir o patrimônio mental da religiosidade – impulso humano para buscar o transcendental, o sagrado. E como religiosidade se expressa de conformidade com as conquistas espirituais e intelectivas, a necessidade psicológica de adoração exterior para tornar mais concreta a relação com Deus fez surgir um enorme contingente de rituais e cerimônias, castas e convenções que determinaram uma ética própria para quantos se filiassem aos roteiros dessa ou daquela crença. Nasceram, então, os padrões de conduta religiosa estabelecidos para que o homem se apresente a Deus em condições dignas de Sua aprovação. Secciona-se o profano do sagrado causando uma divisão inconciliável entre comportamentos classificados como puros e impuros aos olhos do Pai.


“O dogma como crença imposta toma feições fortes porque veio a galope no dorso das ameaças do céu, nascidas em concílios e tribunais recheados de interesses de facção. Dentre essas sacramentações ideológicas que sulcaram a mente com nocivas noções sobre o que seja a renovação espiritual, vamos encontrar o terrível vício de santificação, resultante das ideias de angelitude instantânea, guiando a criatura para condutas puritanas das quais não faziam parte os seus sentimentos, uma idealização do que seja ser cristão.

“Associamos, assim, à tarefa da santificação pessoal, nos dias atuais, a ideia de uma vida sem infortúnios, como se santificar fosse mais uma fórmula de baixo custo para nos livrar da dor, um modo fácil de alcançar o reino dos céus. Fazemos tudo certinho e Deus nos recompensa com a felicidade. Fazemos negócios com Deus.

“A negação das necessidades íntimas a título de santificação leva a uma ruptura nem sempre bem conduzida por parte de quantos anseiam pelos novos ideais de espiritualização. Essa ruptura, no entanto, precisa ser feita passo a passo par não gerar maiores lutas.


“O nível de exigência excessivo com a melhora interior pode gerar muitas perturbações. Confundimos elevada soma de cobranças com esforço efetivo de transformação. A cobrança gera angústia e somente o esforço sereno leva à libertação.

“Muitas ilusões e preconceitos cercam o processo da reforma íntima. Alguns deles são: a ideia de saltos evolutivos com mudanças abruptas, a presunção de que somente o Espiritismo pode propiciar a melhoria do homem, a concepção de que estar na tarefa doutrinária seja automaticamente um indício de conquista virtuosa, a falsa concepção de que existem partes de nós que não podem ser aproveitadas e precisam ser eliminadas ou substituídas por algo nobre, a prisão a modelos mentais de ação como critério de avaliação de crescimento espiritual.

“Poderíamos assinalar que vivemos em maior ou menor influência sob um milenar arquétipo de santificação. A própria Lei do Progresso acende a chama do desejo de ser melhor, no entanto, nossos condicionamentos morais assopram vigorosamente sobre o campo do discernimento, criando miragens e perturbações sem fim.


“Nosso apelo a todos que aqui se encontram, perante a postura da responsabilidade de serem influentes líderes da comunidade doutrinária, é a de que debrucem sobre o tema pouco devassado da conquista de si mesmos e nos auxiliem a estender um programa de moralização dos conceitos espíritas, promovendo a casa espírita ao ideário de ser uma autêntica escola do espírito. A reforma íntima, tão decantada, não tem sido devidamente explicada!

“Que fique clara nossa intenção. O Espiritismo em si, enquanto teoria, é moralizador. No entanto, quantos lhe aderem aos princípios suplicam clareza nos rumos para que edifiquem na intimidade a personalidade nova, já almejada pela maioria dos que se encontram atraídos para as propostas espiritistas. Como mudar? Como fazer? Como ser um Homem de Bem? Eis as nossas questões.

“Jesus nos ampare nesses tempos novos de renovação e pacificação da humanidade. Lutemos todos com todas as forças para atender ao apelo sábio de Emmanuel, quando diz: ‘Expulsai da Terra o egoísmo para que ela possa subir na escala dos mundos, porquanto já é tempo de a Humanidade envergar sua veste viril, para o que cumpre primeiramente o expilais dos vossos corações’.”



Pelo fato do capítulo 30 ser muito extenso, este será dividido em duas partes aqui no blog. Não deixem de ler a continuação do capítulo, denominado "Conclave de Líderes - Parte 2".



1 e 2. Vide mensagem “Atitude de Amor” na obra mediúnica SEARA BENDITA (diversos Espíritos), psicografada pelos médiuns Maria José C. S. Oliveira e Wanderley S. Oliveira.