domingo, 31 de julho de 2016

Disciplina dos Desejos

Reforma Íntima Sem Martírio - Capítulo 26


“Quantos se arruínam por falta de ordem, de perseverança, pelo mau proceder, ou por não terem sabido limitar seus desejos!”

O Evangelho Segundo o Espiritismo – Capítulo 5 - Item 4


Quando desejamos o bem, sentimos o amor, a compaixão e a fraternidade pelo outro.

Quando desejamos o mal, sentimos o ódio, a raiva e a indiferença pelo outro.

Quando desejamos estagnar, sentimos a preguiça, o pessimismo e a descrença.

Quando desejamos o progresso, sentimos o idealismo, o otimismo e a fé.

Entre nós é muito conhecido o enunciado “Desejando, sentes. Sentindo, mentalizas. Mentalizando, ages” (1), que estabelece uma realidade quase geral sobre a rotina da mente.

Desejo, fenômeno da vida mental inconsciente, conquista evolutiva de valor na formação da consciência. Podemos classificá-­lo como uma inteligência instintiva, ampliando o horizonte das pesquisas modernas sobre a multiplicidade das inteligências.

Temos o desejo de viver, desejo dos sentidos, desejo de amar, desejo de pensar, desejo de raciocinar, desejo de gratificação, todos consolidados no que vamos nomear como inteligência primária automatizada, guardando vínculos estreitos com as memórias estratificadas do psiquismo na evolução hominal. É dessa inteligência que é determinado o impulso do sentir conforme o desejo central, desejo esse que mais não é senão o reflexo indutor da rotina mental na vida do homem.

Intensificando ainda mais essas forças impulsivas do desejo central, encontramos os estímulos sociais da atualidade delineando novos hábitos e atitudes, no fortalecimento de velhas bagagens morais da alma por meio do instinto de posse, degenerando em apego lamentável no rumo das apropriações desrespeitosas entre os homens.

Na convivência, a intromissão desse hábito de posse estabelece o ciúme, a inveja, a dependência e a dor em complexas relações. Façamos uma análise mais atenta.

O afeto, como expressão do sentimento humano, carreia, em muitos lances da experiência relacional, um conglomerado de desejos. Entre eles se encontram aqueles que nos mantém na retaguarda espiritual, carecendo de educação a fim de não fazer da vida interpessoal um colapso de energias, em circuitos delicados de conflitos e atitudes desajustadas do bem, provenientes de ligações malsucedidas e possessivas.

Devemos trabalhar para que todos os nossos consórcios de afeto, sejam com quem for, progridam sempre para a desvinculação, abstraindo-­se de elos de idolatria e intimidade ou desprezo e mágoa – posturas extremas no terreno dos sentimentos que conduzem aos excessos.

O afeto que temos é somente aquele que damos, porque o experimentamos nas nascentes do coração, irradiando de nós. E porque é nosso podemos dar, gratificando-nos mais cedê-­lo ao outro do que criar vínculos doentios por exigi-­lo de outrem, em aprisionamentos velados ou declarados. Em verdade, esse possuir afetivo é a nossa busca de completude, entretanto, a verdadeira complementaridade gera autonomia, liberdade e crescimento, enquanto a possessividade gera escravidão, desrespeito e desequilíbrio.

A afeição deve ser administrada na medida exata. Nem frieza, nem excessos. Isso solicita a disciplina sobre os desejos, que são, em boa parte, forças de propulsão nas fibras sensíveis da afetividade.

Quando se trata do tema transformação íntima na vitória sobre nós mesmos, estamos nos referindo, sobretudo, a esses impulsos-­matizes de sentimentos que são originados nas pulsões dos desejos. Graças aos desejos centrais que costumeiramente se assenhoreiam da nossa rotina mental, constata-­se uma separação entre pensar, sentir e fazer. Exemplo comum disso é o ideal de espiritualização que esposamos. Temos consciência da urgência de nos unirmos, amarmos, somar esforços, crescer e melhorar, porém, nem sempre é assim que sentimos em relação àquilo que já conhecemos. Fortes interferências no sentir causam solavancos e acidentes nos percursos da mudança interior. Falamos, pensamos e até agimos no bem em muitas ocasiões, mas nem sempre sentimos o bem que advogamos, estabelecendo “hiatos de afeto” no comprometimento com a causa, atraindo desmotivação, dúvida, preguiça, perturbação e ausência de identificação com as responsabilidades assumidas. Tudo isso coadjuvado por interferências de adversários espirituais, nos quadros da obsessão em variados níveis.

É assim que nossos sentimentos sofrem a carga psico­afetiva milenar dos desejos exclusivistas e inferiores, que ainda caracterizam a rotina induzida nos campos da mentalização.

E como instaurar matrizes novas no psiquismo de profundidade em favor da renovação de nossos sentimentos? Como renovar esse coração milenar pulsando independentemente da vontade?

Eis um empreendimento desafiante e progressivo. A solução está na aplicação de intenso regime disciplinar dos desejos, deixando de fazer o que gostaríamos e não devemos, e fazendo o que não gostaríamos, mas que é o dever.

Em outras palavras, saber desejar afinando impulsos com os alvitres conscienciais.

A disciplina dos desejos tem duas operações mentais principais, que são a contenção e a repetição, para que essa disciplina alcance o patamar de fator de educação emocional.

Na contenção é utilizado todo o potencial da vontade ativa e esclarecida, com a finalidade de assumir o controle sobre as fontes energéticas de teores primários e suscetíveis de causar danos aos novéis propósitos que acalentamos.

Já a repetição é a força que coopera na dinamização dos exercícios formadores de hábitos novos, com os quais desenvolvemos os valores divinos depositados na intimidade do ser desde a criação.

Contenção e repetição são movimentos mentais neutros, que adquirirão natureza e qualidade na dependência das cargas afetivas com as quais serão impregnadas, e nisso encontra-se a verdadeira transformação interior.

A contenção com revolta torna-­se repressão e neurose.

A repetição com descrença torna-­se desmotivação e rotina vazia.

A contenção com compreensão é vigilância e domínio.

A repetição com idealismo é hábito novo e crescimento.

A contenção amplia a vontade no controle sobre si mesmo.

A repetição plenifica, pela vivência, o desenvolvimento de habilidades e competências sobre as potências do ser.

Ambas, contenção e repetição, consolidam a disciplina como instrumento educacional dos desejos.

Como vemos, é sobremaneira decisiva a influência do desejar na caminhada evolutiva de todos nós.

Muitos corações encontram-­se guindados a estreitas formas de expressão afetiva em razão de suas compulsões, adquiridas na satisfação egocêntrica dos desejos ao longo de eras e mais eras, limitados por não se encontrarem aptos a conduzir os sentimentos com elevação moral, quase sempre atrelados à erotização e à irresponsabilidade nas emoções.

Outras vezes, os fatores complicadores surgem na infância, com os desejos não gratificados gerando carências de variada ordem na estrutura psicoemocional da criança. A necessidade infantil de afeto e atenção é um desejo natural e Divino para impulsionar o crescimento, contudo, quando não é convenientemente compensada, cria efeitos lamentáveis no seu desenvolvimento.

Vemos, assim, que significado tem os grupos solidificados nos valores evangélicos, notáveis por sua força moralizante, seja no lar ou na vida social, instigando novos desejos na nossa caminhada de aperfeiçoamento individual.

Grupos amigos, sinceros, autênticos e fraternos são buris disciplinadores das tendências menos felizes, arrimo psíquico para a superação das más emoções, estímulo ao elastecimento de novos hábitos e cooperação ante as lutas de contenção para quantos respiram ainda sob o regime doloroso desses limites provacionais nas leiras do sentimento, sobrecarregados de reflexos milenares a vencer.

Em ambientes assim, a contenção é menos penosa e a repetição tem o reforço contagiante dos propósitos maiores nutridos coletivamente.

E quanto aos grupamentos espíritas, que papel é reservado a eles perante tal realidade?

Precisamos muito de condições especiais para que tais dinâmicas da vida mental sejam dirigidas para aquisições consistentes e de bons resultados. As tarefas de amor e instrução das quais fazemos parte são ricos contributos nesse sentido. Enquanto estamos no trabalho espiritual, absorvemos do grupo de tarefeiros o somatório energético dos desejos elevados, o qual nos inspira nas diligências de amor conjugado às sublimes pulsões que vertem de tutores de além-­túmulo, sensibilizando as formas do psicoafetividade em direção a uma transcendência. Razão pela qual o amor ao próximo é reeducativo e tão modificador de nossos padrões de sentimento em relação à vida.

A propósito, alguns companheiros da lide sentem-­se invadidos por um estado de hipocrisia, quando em outros locais fora das tarefas de paz, por não conseguirem efetivar a manutenção de tais experiências envolventes da alma a altos graus de sensibilidade pelos outros. Isso ocorre, exatamente, porque as realizações espirituais são cercadas de condições especiais, quais fossem benfazejas enfermarias do espírito, na ministração de doses e tratamentos apropriados às imperiosas necessidades morais e emocionais que carreamos. Nesse trabalho dos grupos formadores do caráter e de nossa espiritualização, estaremos sempre em contato com o ser luz que almejamos para as realidades novas da existência, em contraposição às sombras acalentadas durante milênios. Essa fonte estimuladora é acréscimo de paz e serenidade ante as fortes reações cerceadoras do mundo íntimo, na busca de impedir-­vos a caminhada de erguimento moral e espiritual.

Os grupos conscientes, portanto, são verdadeiras escolas de novos sentimentos.

Por meio dos reflexos da conduta alheia que assimilamos, passamos a esculpir uma nova ordem de hábitos, renovando desejos e sublimando a sombra das tendências inferiores em propósitos dignificantes.

Mesmo que em tais ambiências venhamos a sentir e desejar o que não devemos, teremos arrimo psíquico e amizade sincera para compartilhar nossas necessidades, e só isso, muita vez, bastar­-nos­-á para ativar a vontade firme no domínio sobre nossos impulsos. Semelhante treinamento será nossa base de sustentação quando aferidos na rotina dos dias nos ambientes de provação, à qual todos nos encontramos guindados.

A vida afetiva é uma experiência que inclui desejos; burilemo-­los sem fugas, nem supervalorização, compreendendo as escolhas da evolução moralmente tortuosa que empreendemos em milênios de loucuras emocionais.

Nosso passado é também nosso patrimônio; jamais o destruiremos, apenas o transformaremos.

A primeira condição de transformação, porém, é entendê-­lo e aceitá-­lo, por isso mergulhemos na vida interior e descubramos, por meio de nossos sentimentos, aquilo que desejamos, trabalhando pelo autodescobrimento.

Conhecendo-­nos melhor, laboraremos com mais acerto o autoaperfeiçoamento. Enquanto isso, até decifrarmos com maior lucidez os códigos dos desejos, empenhemo-nos na contenção com amor a nós mesmos e na repetição perseverante dos anseios de libertação que nutrimos no dia a dia.

1. Pensamento e Vida, Francisco Cândido Xavier, pelo Espírito Emmanuel, FEB.

sábado, 23 de julho de 2016

Fé e Singularidade

Reforma Íntima Sem Martírio - Capítulo 25


"A fé necessita de uma base, base que é a inteligência perfeita daquilo em que se deve crer. E, para crer, não basta ver; é preciso, sobretudo, compreender."

O Evangelho Segundo o Espiritismo – Capítulo 19 - Item 7


Quando deixamos de reciclar nosso mundo íntimo, é comum fixarmo­-nos em ideias e comportamentos que criam estilos invariáveis no modo de ser. É assim que muitas crenças, preconceitos, hábitos, condutas, chavões verbais e tradições são mantidos estagnados no tempo pela criatura em razão de sua forma de entendimento racional, decorrente de experiências que viveram ou da educação que receberam desde o berço. A esse conjunto de valores damos o nome de certezas emocionais, ou seja, referências de vida da alma no campo de sua movimentação, por meio das quais o ser cria, trabalha e respira absorvendo e expressando sua personalidade.

Considerando o estágio evolutivo da Terra, essas certezas do homem se encontram entorpecidas pelo materialismo em milênios de repetição, constituindo o fenômeno psicológico da permanência – a ilusão de querer manter para sempre em suas mãos aquilo que foi alvo de suas conquistas. Dessa forma, o individualismo sulcou traços morais e intelectuais marcantes que educaram o homem para o meu, em detrimento do nosso: meu filho, minha palestra, minha casa, minha família e até minha religião...

Esse fenômeno, do qual raríssimas vezes escapamos, conduziu muitos de nós, espíritas que declaramos possuir uma fé racional distante do dogmatismo, a uma postura de paralisia do raciocínio em muitas questões, as quais apelam para nossa urgente coragem de desapego e reconstrução pela oxigenação de nossas ideias e conceitos.

A esse respeito, entre as infinitas reciclagens a fazer, vejamos uma velha e costumeira forma de análise sobre a qual nos debruçamos, quase todos nós, nos temas da vida moral do espírita-­cristão em torno da mensagem de Jesus. Já perceberam, meus companheiros, com que frequência empregamos as frases "É falta de Evangelho no coração!", "Falam do Evangelho, mas fazem exatamente o contrário!", "Sem Evangelho não teremos a solução!", "Chegaram em má situação à vida espiritual porque não viveram o Evangelho!", "Falam de Evangelho mais não o aplicam!", "A ausência do Evangelho sentido levou aquele grupo à derrota!"

Não são poucas as vezes que, para explicar os motivos de fracasso ou de erro, assinala-­se que a causa se encontra na falta de viver os ensinos do Evangelho. Absolutamente não ousaríamos contestar tal questão, contudo, uma oportuna e desafiadora indagação precisa ser lançada a título de repensar caminhos e abrir ângulos de enriquecimento no tema. Poderíamos, por exemplo, indagar para debate e atualização de nossos pensamentos o seguinte: por qual motivo as criaturas não vivem o Evangelho?

De pronto surge uma resposta-­chavão: "Porque é muito difícil seguir os ensinos do Mestre!"; entretanto, para sermos sinceros conosco, essa resposta não explica nada palpavelmente. Então teríamos que nos aprofundar e questionar: "E por que é tão difícil seguir os ensinos da Boa Nova?"

Aqui deparamos com um dos pontos de convergência mais comuns nos atendimentos que realizamos no Hospital Esperança, chamado Exercício de Impermanência – uma atividade de readaptação com espíritas recém-­desencarnados que se fixaram em formas convencionais de pensar, e que cultivaram a ilusão de terem alcançado pleno domínio sobre os assuntos da vida espiritual, sendo convocados a reexaminar amplamente suas convicções e aspirações para além da morte física. Por sugestão do benfeitor Bezerra de Menezes, vamos compartilhar algo sobre semelhante iniciativa com os amigos encarnados, a fim de verificarem com antecedência uma particularidade das reciclagens a que somos convidados no país da verdade.

O Exercício de Impermanência é constituído de ciclos de debates entre coidealistas que já conseguiram se recuperar de momentos mais dolorosos, ou ainda com aqueles que, mesmo guardando relativo sossego interior adquirido na recém-finda reencarnação, carecem de reaver esse dinamismo mental de soltura nos conceitos e visões, para se integrarem com o divino mecanismo universal da transcendência e da mutação. A esse fenômeno da vida mental chamamos de desilusão ou o rompimento com as certezas-­amarras, colecionadas durante a passagem pela hipnose do corpo. Esse exercício tem etapas variadas, e entre elas o acesso do participante a informes muito preciosos e previamente selecionados por nossa equipe sobre suas precedentes existências, quando se cristalizaram no campo mental algumas matrizes emocionais que funcionam como piso para muitas das atuais ilusões-­certezas que carregam para a vida extrafísica.

Uma das primeiras e mais motivadoras perguntas nessa tarefa, destinada especialmente aos seguidores de Jesus, é exatamente essa a que referimos acima: por que não se vive o Evangelho? O que impede o homem de aplicar os ensinos de Jesus? Por que tem havido tanto discurso e pouca prática nos últimos dois mil anos da Terra?

É importante assinalar aos queridos amigos de ideal no corpo físico, muitos dos quais encontram-­se angustiados com sua infidelidade aos textos e roteiros do espiritismo-­cristão, que ninguém, em sã consciência, deixa de aplicar intencionalmente o que aprendeu e, se o faz, ainda assim há questões muito profundas na intimidade do ser que merecem uma análise madura e caridosa, antes de nomear essa atitude de hipocrisia ou má-fé. Resguardar-se nesse enfoque habitual, que destaca a origem de todos os nossos problemas e dores devido à falta da vivência evangélica, tem levado muitos corações ao simplismo, incentivando o esclarecimento superficial com cunho religiosista. Temos fundamentos bastante sensatos no Espiritismo para estabelecer pontes com todos os ramos da ciência e da filosofia, na dilatação de nosso olhar sobre essa indagação que poderão ampliar horizontes na construção da fé racional.

A edificação do homem novo reclama, sobretudo, lucidez intelectual sobre as causas de nossas atitudes. Para isso, somente abandonando visões fixas e ampliando perspectivas de compreensão.

Muitos corações inspirados pelas claridades do Espiritismo chegam por aqui como alunos que colaram, ou seja, viveram às expensas do que pensavam outros coidealistas ou seguiram os ditados mediúnicos com rigor na letra. Em face disso, deixaram de experimentar a mais notável vivência da alma enquanto na encarnados: a solidificação da fé raciocinante.

Dizemos fé raciocinante porque, ao se colocar que possuímos uma fé raciocinada, inferimos que as noções de doutrina, por si sós, são suficientes para gestá-­la automaticamente. Todavia, mesmo com tanta luz nos raciocínios haurida com a literatura e os recursos de ensino usados nos centros espíritas, o desenvolvimento da fé pensante não ocorre por osmose, e sim por etapas pertinentes à singularidade de cada criatura. Não existe fé raciocinada coletiva, conquanto nosso movimento libertador, em razão de engessamento filosófico e tendências psicológicas dogmáticas, tenha se aferrado demasiadamente a padrões e convenções que estrangulam a criatividade e a liberdade de pensar.

Fé raciocinada é um fenômeno psicológico e emocional construído com base no desejo autêntico e perseverante de compreender o que nos cerca – conquista somente possível por meio da renovação do entendimento e da forma de sentir a vida. É conquista individual, construção íntima e pessoal, e não pode ser considerada adesão automática a princípios religiosos ou ideias que nos parecem aceitáveis e convincentes. E quanto mais maleabilidade intelectiva, mais chances de alcançarmos a fé que compreende e liberta.

Fomos educados para obedecer sem pensar, aceitar sem questionar. A cultura humana não é rica na arte de estimular a pensar e filosofar, debater e reinventar. A fé racional somente será lograda quando aprendermos a pensar a moral, a pensar sobre si mesmo, a debater sobre as vivências interiores com espírito de liberdade, distante da censura e das recriminações, com coragem para se distanciar de estereótipos. A chamada conscientização é uma conquista intransferível, individual, somente possível quando permitimos a nós mesmos analisar nossa singularidade com amor e ternura, sem punições e culpas. Não existe melhora íntima concreta sem trilharmos essa vivência emocional.

A educação na Terra passa por grandes transformações. Penetramos a era da curiosidade, queremos entender a vida. Queremos saber quem somos...

A maior conquista da etapa hominal é a capacidade de raciocinar, no entanto, se essa habilidade não for utilizada para a aquisição gradativa da consciência de si mesmo, estagnaremos no patamar de colecionares de certezas que nos foram transmitidas, esbanjando muita informação e carentes de transformação. A boa nova espírita tem que saltar da ilha da inteligência e integrar o reino do coração. É necessário abolir as fantasias do que deveríamos ser e nos aplicar a sentir o que somos de fato, laborar com nosso eu real.

Nossa tarefa primordial, portanto, é recriar o conhecimento espírita adequando-­o à nossa singularidade, sem com isso querer criar novos padrões coletivos. Respeitar os ensinos gerais, mas desvendar os nossos mistérios interiores, únicos no Universo, eis o desafio da renovação espiritual.

É tão penoso viver o Evangelho porque, em verdade, é penoso o contato com nosso eu real, para o qual toda a mensagem de Jesus é dirigida. E para evitar esse contato, a mente capacitou-­se a gerir as ilusões em milênios de experimentações, sendo muitas delas um mecanismo de fuga e proteção para nos isentar do contato doloroso com a Verdade sobre nós mesmos.

Existe um simplismo prejudicial quando nos acostumamos a afirmativas de periferia. Lancemo-­nos a essa intrigante questão sobre quais são os motivos pessoais de não vivermos o Evangelho e emergirá para a consciência todo um manancial de reflexões, com as quais haveremos de trabalhar em favor de nossa maturidade.

A bula universal da palavra cristã para cada qual terá dosagem e componentes específicos, conforme o estágio espiritual em que se encontre, não sendo oportuno copiar receitas. A singularidade é fundamento determinante da forma e da intensidade com que nos apropriaremos individualmente da vivência cristã. Nessa perspectiva incluem-­se as razões pelas quais nem sempre fazemos aquilo que pregamos.

Não se vive o Evangelho, entre outras infinitas questões, porque não se tem trabalhado ainda nos grupamentos humanos, inclusive os espíritas, um método que permita esse autoencontro em bases educativas para a alma em aprendizado. O autoconhecimento solicita orientação segura e objetivos nobres para não se desvirtuar em autoflagelação e dor, normas severas e reprimendas – mecanismos típicos do religiosismo que se destina à massificação, com total descrédito à exuberância dos valores individuais que deveriam florir em nossos caminhos.

quarta-feira, 13 de julho de 2016

Ícones

Reforma Íntima Sem Martírio - Capítulo 24


"Entretanto, abandonando de todo a idolatria, os judeus desprezaram a lei moral para se aferrarem ao mais fácil: a prática do culto exterior."

O Evangelho Segundo o Espiritismo – Capítulo 18 - Item 2

A palavra integral significa por inteiro, total. Quando mencionamos o homem integral, estamos referindo ao ser na sua completude, a integração de todas as suas partes num todo.

O homem integral harmoniza os seus opostos e resgata a sua identidade original, já que ao longo da caminhada evolutiva estruturou uma imagem irreal do Eu Divino no espelho da vida mental que nomeamos como falso eu, com a qual temos caminhado há milênios no trajeto da evolução.

A vida é dialética, tem aparentes contradições porque consiste de opostos, que são, em verdade, complementares. Basta observar: noite e dia, vida e morte, verão e inverno, razão e intuição, bem e mal, claro e escuro, masculino e feminino. Sem os opostos não existe a vida.

Aprendemos, no entanto, a estabelecer divisões, uma visão cartesiana de partir o indivisível, estabelecendo, assim, a luta contra o que se convencionou considerar como sendo mau, não aceitável, feio e inutilizável. Nasce, então, o conflito, a perturbação, a cobrança.

Olhar as duas faces da moeda é uma grande sabedoria de vida. É uma atitude saudável a ser cultivada com cuidado no processo de transformação, que é a grande razão de nossa peregrinação pela Terra.

Luz e sombra são opostos. No entanto, uma depende da outra, assim como o passo da perna direita depende do passo da perna esquerda. Luz e sombra, perfeição e imperfeição são faces de uma mesma estrutura da alma, razão pela qual será impróprio adotar o conceito de eliminação para os assuntos da vida interior. Nunca eliminamos uma parte, mas a integramos.

Contudo, esse processo de integração gera um doloroso sentimento de perda, necessário ao progresso. Perde-se o velho para construir o novo. Na verdade, efetuamos uma reconstrução marcada por etapas desafiantes. Perde-­se a velha identidade e não se sabe como construir o que se deve ser agora, a nova identidade.

O conhecimento espírita é uma mola propulsora de semelhante operação da vida mental. Ao adquirir a noção da imortalidade, a alma sensibiliza-se para novas escaladas. Decide pela transformação, mas observa de pronto que mudar não é tarefa simples, que se concretiza de uma hora para outra. Assim, enquanto a criatura não constrói o homem novo e singular, único e incomparável que todos deveremos erguer na intimidade, ocorre um natural processo de imitação que o leva a fazer cópias de conduta do que lhe parece ser ideal. São os estereótipos espíritas – referências que adotamos, espontaneamente, para avaliar o proceder perante a nova visão de vida.

Por um tempo esse será o caminho natural da maioria dos candidatos à renovação de si mesmos. Carecem de referências externas que funcionam como boias indicadoras para sua elaboração interior dos conhecimentos novos. Um livro, um palestrante, um devotado seareiro da caridade ou mesmo um amigo espiritual poderão se tornar bússolas para o progresso pessoal, o que é muito natural.

Contudo, semelhante identificação natural pode adoecer em razão de vários fatores dolorosos para a alma em reforma íntima, ensejando que essa relação educativa com os referenciais caminhe para matizes diversos. Um dos mais comuns desvios nesse tema é a idolatria.

Idolatria é o excessivo entusiasmo e admiração por uma pessoa com a qual partilhamos ou não a convivência. São oradores, médiuns e trabalhadores que costumam se destacar pelas virtudes ou experiências, e que são tomados à conta de ícones, com os quais delineamos a noção pessoal de limite máximo ou modelo para os novos passos assumidos na caminhada espiritual.

Os ícones na história grega são as divindades que representam valores excelsos e santificados.

Sem considerar os naturais sentimentos de admiração e entusiasmo dirigidos a quem fez por merecê-­los, quase sempre nas causas dessa idolatria encontra-­se o mecanismo defensivo da mente, pelo qual é projetado no outro aquilo que gostaríamos de ser.

Dois graves problemas, entre os muitos, decorrem dessa relação idólatra: as exageradas expectativas e a prisão aos padrões.

As expectativas transferidas ao ícone carreiam desejos e anseios que se tornam âncoras de segurança para os problemas individuais. Caso a criatura se habitue ao conforto de escorar-­se psicologicamente no outro e fugir do seu esforço autoeducativo, passará ao terreno das ilusões, sentindo-­se e acreditando-­se tão virtuosa ou capaz quanto ele. Ocorre, então, uma absorção da identidade alheia. É como ser alguém com os valores do outro.

Quanto aos padrões, vamos verificar uma outra questão que tem trazido muitos desajustes: o hábito do dogmatismo, uma velha tendência humana de ouvir a palavra dos homens santificados pela hierarquia religiosa. Pessoas que se tornam carismáticas por sua natural forma de ser ou pelo valoroso desempenho doutrinário são, comumente, colocadas como astros ou missionários de grande envergadura, fazendo de seu proceder e de suas palavras, ideias conclusivas e definitivas sobre as mais diversas vivências da espiritualidade ou sobre quaisquer problemáticas humanas, como se possuíssem a visão integral de tais questões.

Quaisquer dessas vivências, expectativas elevadas ou criação de modelos podem nos trazer muita decepção e revolta. Somos todos aprendizes, uns com mais, outros com menos experiência. Todos, no entanto, sem exceção, como aprendizes do progresso e gestores do bem. Podemos sempre aprender algo com alguém, desde que tenhamos visão e predisposição à alteridade. O que hoje entendemos como sendo excepcional em alguém, amanhã poderá não ser tão útil para nossa percepção mutável e ascensional.

Por mais bem sucedida a reencarnação na melhoria espiritual, isso será apenas o primeiro passo de uma longa jornada. Então porque glórias fictícias com ídolos com pés de barro? Missionários e virtuosos? São muito raros na Terra. Para conhecê-los é muito fácil, nenhum deles aceita uma relação de idolatria, enquanto se verifica outro gênero de conduta com muitos que se julgam ou são julgados como tais.

Muitas vezes os "ídolos espíritas" que miramos não suportariam ter feridas as cordas dos interesses pessoais. Bastaria alguém cumprir o dever – ainda poucas vezes exercido – de questioná-­los com fraternidade para se rebelarem. Acostumou-se tanto a essa convenção em nossos ambientes de cristianismo redivivo, que já não se indaga ou filosofia, apenas se crê. Especialmente se determinadas fontes consagradas, sejam homens, instituições ou mesmo desencarnados, expedem ideias ou teorias, não se pesquisa, não se analisa com a prudência que manda o bom senso, apenas crê-­se. Não existem debates e, o que é mais lamentável, muitos corações incensados pela reverência excessiva não fazem nada para dela afastar os menos vividos, os quais terminam, em muitos casos, como pupilos mimados e protegidos que fazem escola...

Apesar da constatação desses malefícios, tudo isso faz parte da sequência histórica de nossas vidas. Quando refletimos sobre a questão, é no intuito de chamar a atenção de todos nós para os prejuízos de continuarmos cultivando semelhantes expressões de infantilidade emocional. Existe, de fato, uma velha tendência que nos acompanha, a qual podemos declinar como hábito da canonização psíquica.

Muitos ídolos adoram as bajulações e burburinhos em torno de seu nome. São folgas que não deveríamos buscar para nossa vida!

Os ídolos deveriam se educar e educar os outros para assumirem a condição de condutores, aqueles que lideram promovendo, libertando, e não fazendo coleção de admiradores para alimentar seu personalismo.

Como bons espíritas, apenas começamos os serviços de transformar a autoimagem de orgulho, profundamente cristalizada nos recessos da mente. Quando nos adornamos com qualidades e virtudes que imaginamos possuir, perdemos a oportunidade de ser nós mesmos, de eleger a autenticidade como nossa conduta, de construir o quanto antes a nova identidade que almejamos.

Inspiremo-­nos em nossas referências, todavia, não façamos deles ídolos. Ouçamo-­los, tiremos o proveito de suas conquistas, os respeitemo-nos e façamos tudo isso com equilíbrio, nem mais, nem menos.

Retifiquemos os nossos conceitos sobre lideranças no melhor proveito das oportunidades das sementeiras espíritas.

Líderes autênticos são dinamizadores incansáveis da criatividade e dos valores alheios. São estimuladores das singularidades humanas.

Por isso suas qualidades são empatia, confiança, capacidade de descobrir pendores.

Líderes que se integram na dinâmica de agentes da obra do Pai assumem a postura de serem livres, sem apego às suas vitórias ou realizações.

Sua alegria reside em ser útil e ver as obras sob sua tutela crescer em satisfação coletiva.

Dirigir, à luz das claridades espíritas, é valorizar o distinto, o diferente, e não apenas os semelhantes, atendendo sempre ao bem geral. Isso se chama conduta de alteridade.

Expoentes sempre surgirão. O que importa é o que faremos deles ou com eles. Evitemos, também, a substituição que tem se tornado frequente: não os deixemos para aferrarmos às práticas. A isso se referia Kardec quando disse: "Entretanto, abandonando de todo a idolatria, os judeus desprezaram a lei moral, para se aferrarem ao mais fácil: a prática do culto exterior."

terça-feira, 5 de julho de 2016

Só o Bem Repara o Mal

Reforma Íntima Sem Martírio - Capítulo 23


"Indeterminada é a duração do castigo, para qualquer falta; fica subordinada ao arrependimento do culpado e ao seu retorno à senda do bem."

O Evangelho Segundo o Espiritismo – Capítulo 27 - Item 21

O desejo do progresso é princípio ativo em todas as almas, induzindo a vontade para a ascensão nos domínios da evolução. Embora faça parte do processo natural de aperfeiçoamento individual em todo ser humano, esse desejo toma conotações bem específicas conforme a natureza das provas vividas na erraticidade. Quanto mais dor e decepção no intervalo entre as reencarnações, mais profundos anseios de mudança integrarão as aspirações desse coração em plena Terra, determinando alguns traços psicológicos. Esse desejo é mais intenso naqueles que já regressaram arrependidos ao corpo físico.

Na verdade, todos retornamos ao carreiro físico com certo nível de arrependimento que intensifica esse anseio de melhora e reparação. Assim sendo, volve-­se ao corpo carnal com o olvido temporário dessas recordações, mas com expressiva soma de ideais de renovação, sustentados por esse piso psicológico do remorso dinâmico, na intimidade da vida mental. Isso determina os motivos pelos quais para uns a reforma íntima é tão essencial em relação aos vários objetivos da existência, todavia, igualmente, explica a causa de tantos sentimentos que levam o homem ao sofrimento, quando ainda estagia no remorso sem o buril da vontade ativa de reparar suas faltas.

A maioria de nós, que somos atraídos para a necessidade imperiosa de renovação perante a vida nas linhas do bem, quando no retorno à escola terrena, carreamos na intimidade uma pulsante aspiração de nos transformarmos, em razão das angústias experimentadas pelas duras revelações descerradas pela desencarnação.

O traço psicológico característico desse quadro é um forte sentimento de cobrança de si mesmo. Isso exerce uma pressão psíquica, facilmente percebida por vários incômodos durante todas as etapas da existência carnal, desde a infância até a velhice, somente atenuável pelo exercício do amor, que modifica as paisagens da dor por meio da edificação dos benefícios do bem aplicado e sentido.

Nesse torvelinho do sistema psíquico de cobranças provocado pelo estado de arrependimento surgem dores emocionais profundas – sintomas de almas em crescimento. Depressão e baixa autoestima, insegurança e ansiedade muito frequentemente são angústias do aperfeiçoamento. São alguns dos castigos a que se refere o Mestre Rivail, quando diz: "Indeterminada é a duração do castigo, para qualquer falta;" a marca mais saliente de suas manifestações pode ir desde uma suportável perturbação no halo energético da criatura, pela purgação moderada, ou mesmo de descargas eletromagnéticas de intenso teor deletério, das distonias comuns da neurose, até o câncer, a esquizofrenia, a artrite reumatoide, as ulcerações fulminantes, a aids, ao desequilíbrio glandular e neuroquímico-­cerebral, causando parafrenias, paranoias e atrofia na saúde mental.

Outro castigo psicológico muito frequente é a inquietude interior, expressada em forma de contínua preocupação nascida do nada, sem utilidade racional ou explicável – reflexos típicos de reajustamento do espírito que se despe, pouco a pouco, do monturo de suas faltas.

É preciso que se esclareça que não temos uma caixinha de sentimentos guardados do passado. Sentimento é algo vivido no presente. Não existe sentimento de culpa arquivado, existe morbo psíquico acumulado como resultado das feridas conscienciais que se espraiam para o corpo, transformando-o em um dreno.

Todo esse processo de desajuste pode fixar, de forma mais acentuada no psiquismo ou no cosmo biológico, os reflexos de sua ação, criando, em muitos casos, o encontro de ambas as perturbações, quando não há reações favoráveis à recuperação da paz interior.

A cobrança é o estado de incômodo permanente criado pela presença quase contínua desse morbo psíquico no halo de energias sutis da mente, impedindo o fluxo natural das correntes da saúde, da harmonia e do amor a si mesmo. É como se fossem doses controladas ou um expurgo dirigido.

Conquanto dolorosa, essa é a forma pela qual a alma resgata o vínculo entre sentimento e consciência, rompido pela artimanha aprendida de negar sentimentos para não escutar os alvitres da voz interior. Nunca enganamos a consciência, porque ela é o tribunal infalível da Verdade em nós. No entanto, desenvolvemos, ao longo de milênios, a capacidade de negar os sentimentos que ela nos envia como sendo suas mensagens dirigidas ao bem. O coração é o espelho da consciência. Pelo que sentimos, identificamos os apelos da consciência em favor do nosso progresso. Recusando reincidentemente, em séculos de rebeldia, seus alvitres pela via do sentir, estabelecemos o que nomeamos como cristalização do afeto, um desajuste nos campos da vida mental que causa inúmeros transtornos psiquiátricos.

Arrepender-se é criar um elo entre o que sentimos e a voz de Deus na intimidade. E somente um sentimento será capaz de consolidar esse resgate: o amor. Sem amor não existirá transformação para melhor. O autoamor é a base da mudança pessoal. Somente nos amando venceremos a severidade com nossas imperfeições, escapando das garras da culpa e do perfeccionismo. Somente nos amando permitiremos a alegria com as pequenas vitórias de cada dia, acostumando-nos a valorizar nossos esforços na aquisição do otimismo e da motivação para prosseguir. Somente nos amando encontraremos estímulos para caminhar um tanto mais.

Arrependimento é via de redenção e, ao mesmo tempo, castigo para almas em reeducação. Os arrependidos, conquanto a caminho da recuperação de si mesmo, experimentam larga dificuldade na autoaceitação, cobram severamente de si mesmos em razão do sistema autopunitivo implantado pelo morbo de culpa agregado ao seu campo áurico e perispiritual, em mutações vibratórias similares a descargas de alta voltagem. Uma insatisfação incessante, eis a faceta mais traduzível desse processo curativo do Espírito. Esse quantum energético enfermiço é um dos fatores causais da desarmonia dos neurotransmissores da química cerebral, como a serotonina e a noradrenalina.

Mesmo em desacordo com as definições da filosofia e da psicologia humanas, tratamos aqui do arrependimento como sendo a nossa maior conquista, uma virtude, e não somente um estado mental passageiro que decorre de atitudes equivocadas. É uma questão de decisão profunda para quem atingiu a saturação nas más escolhas que fez, repetidamente, em desacerto com as Leis Divinas. É uma virtude porque se trata de uma vitória substancial para que a alma, arraigada nos tormentos da ilusão, possa se libertar dos resultados infelizes de suas atitudes milenares.

Por essa razão, costumamos assinalar que para nós, criaturas em linha inicial de consciência e maturidade, especialmente para nós que abraçamos a causa espírita, nossa única qualidade é a de almas que nos arrependemos do mal e desejamos ardentemente o bem.

Que qualidade desenvolvemos senão a de cansarmos do mal deliberado? Que condição seria capaz de endossar o retorno à vida corporal, senão o desesperado anseio de recomeçar e refazer ações? Por que, então, o encanto ou delírio com traços sublimes que ainda não galgamos?

Acordemos para a Verdade espiritual que nos cerca e promovamos nosso distanciamento das ilusões de grandeza, as quais têm assalariado os conceitos sociais humanos que não asseguram sossego e luz ao coração cansado e sofrido por erros atrozes.

Sem medo, vergonha ou culpa, verifiquemos os quistos morais que fomos chamados a extirpar, e não nos sintamos diminuídos nem desvalorizados em razão dessa inadiável viagem ao encontro do eu superior.

Conforme elucida Kardec: "Desde que o culpado clame por misericórdia, Deus o ouve e lhe concede a esperança. Mas não basta o simples pesar do mal causado; é necessária a reparação, pelo que o culpado se vê submetido a novas provas em que pode, sempre por sua livre vontade, praticar o bem, reparando o mal que haja feito."(1)

Aqui chegamos ao ponto clímax de nossa reflexão. Somente se arrepender não basta, é preciso realizar. Somente estagiar no desejo de melhora não é suficiente para o equilíbrio, é mister agir na construção do bem. A reforma efetiva de nós mesmos depende de trabalho e obras.

Evitar o mal é a parcela inicial de um processo renovador. Fazer o bem é a etapa que vem a seguir, pela construção do bem em nós mesmos. Só o bem construído em ações pode ser sentido pelo coração, e somente sob a tutela das suas ondas renovadoras a alma, em ambos os planos existenciais, poderá talhar valores com mais intensidade no imo de si mesma. Vemos, assim, o valor incomparável das atividades doutrinárias de amor nos serviços sociais e nas práticas de espiritualização da doutrina espírita. No campo fértil dos estímulos de elevação, seja pelo estudo ou pela caridade sentida, o homem se ilumina e arregimenta forças sutis que o impulsionarão a mudanças profundas no reino da vida interior, as quais nem ele mesmo, a princípio, terá como aquilatar.

"A perda de um dedo mínimo, quando se esteja prestando um serviço, apaga mais faltas do que o suplício da carne suportado durante anos, com objetivo exclusivamente pessoal." (2)

"Só por meio do bem se repara o mal e a reparação nenhum mérito apresenta, se não atinge o homem nem no seu orgulho, nem nos seus interesses materiais." (3)

O arrependimento é nossa maior conquista, porque por meio dele já estamos procurando a reparação pelo labor no bem e pela reeducação dos costumes. Somente dessa forma somos capazes de vencer um dia após o outro, sem desanimarmos da oportuna semeadura de amor que começamos a plantar, independentemente das tormentas interiores provocadas pelo bisturi das dores emocionais que venhamos a experimentar.

Só o bem repara o mal. Só o bem nos dará energias essenciais para continuar.

Concluímos, portanto, que lutar e tentar, errar e recomeçar faz parte da longa caminhada regenerativa, e somente uma atitude pode fazer com que o arrependimento se transforme em loucura ou perturbação, fracasso ou queda: a desistência de tentar, pois assim transformaremos o arrependimento impulsionador em remorso estagnante e tortura mental o caminho do desajuste...

Trabalhemos incessantemente pelo bem.

E se algum de nós ainda nutre dúvida sobre o que seja o bem, guardemos a eloquente e universal fala do Espírito Verdade:

"Jesus disse: vede o que queríeis que vos fizessem ou não vos fizessem. Tudo se resume nisso. Não vos enganareis." (4)

1. O Evangelho Segundo o Espiritismo - Allan Kardec – Capítulo 27, Item 21.
2. O Livro dos Espíritos - Allan Kardec – Questão 1000.
3. O Livro dos Espíritos - Allan Kardec – Questão 1000.
4. O Livro dos Espíritos - Allan Kardec – Questão 632.