sexta-feira, 29 de maio de 2020

Azedume, Temperamento Epidêmico

Livro: Mereça Ser Feliz
Autora Espiritual: Ermance Dufaux

Capítulo 20

“Todas as vezes, pois, que, num grupo, um dos seus componentes cai na armadilha, cumpre se proclame que há no campo um inimigo, um lobo no redil, e que todos se ponham em guarda, visto ser mais que provável a multiplicação de suas tentativas. Se enérgica resistência o não levar ao desânimo, a obsessão se tornará mal contagioso, que se manifestará nos médiuns, pela perturbação da mediunidade, e nos outros pela hostilidade dos sentimentos, pela perversão do senso moral e pela turbação da harmonia. Como a caridade é o mais forte antídoto desse veneno, o sentimento da caridade é o que eles mais procuram abafar. Não se deve, portanto, esperar que o mal se haja tornado incurável, para remediá-lo; não se deve, sequer, esperar que os primeiros sintomas se manifestem; o de que se deve cuidar, acima de tudo, é de preveni-lo. Para isso, dois meios há eficazes, se forem bem aplicados: a prece feita do coração e o estudo atento dos menores sinais que revelam a presença de Espíritos mistificadores. O primeiro atrai os bons Espíritos, que só assistem zelosamente os que os secundam, mediante a confiança em Deus; o outro prova aos maus que estão lidando com pessoas bastante clarividentes e bastante sensatas, para se não deixarem ludibriar.”

O Livro dos Médiuns - Capítulo 29 – Item 340

Retifiquemos os conceitos sobre o azedume em favor do nosso autoconhecimento e vigilância.

Azedume não é traço emocional somente de mau-humorados e irritadiços, pois ultrapassa essas conotações mais conhecidas e encontra-se na raiz de muitos quadros  comportamentais da vida moderna.

O processo químico do azedume ocorre, igualmente, nos campos vibratórios humanos. É similar à fermentação que tornam alguns alimentos imprestáveis e fazem de outros uma fonte de transformação e reciclagem.

No mundo das vibrações, azedar é pestear a corrente centrífuga do perispírito de teores energéticos inferiores, "acidulantes".

Sua causa-matriz, na maioria dos casos, é a pertinaz insatisfação com a existência carnal da atualidade com escassa gratificação e prazer. Não significa privação exterior, mas inibição íntima. Homens existem que vivem na prodigalidade de recursos para a auto-realização, no entanto, não conseguem fruir afetivamente a satisfação com o que possuem, sobraçando em queixume irritabilidade ao menor sinal de contrariedades com as quais convivem continuamente, em face de acentuada predisposição a incomodar-se com bagatelas da vida. É uma permanente insatisfação, em verdade, com origem na individualidade espiritual.

Azedume é a postura de "revolta muda e impulsiva" da criatura que se abateu na luta pela superação de seus desgostos e desamor a si mesmo. Tal estado de perturbação do afeto é uma fuga de difícil diagnose aos mais experientes esculápios, e apresenta variado quadro de sintomas avaliados, habitualmente, como quadros mentais patológicos ou obsessões pertinazes.

Tomemo-lo como uma espécie de "neurose original", ou seja, um desajuste entre as escolhas pré-reencarnatórias e a sua realidade na Terra. O desconforto e a inaceitação geram uma insatisfação seguida de alterações no estado de humor, tipificando-se em múltiplos processos morais, psíquicos e emocionais.

Fenômeno muito sutil da vida mental e emocional, porque enreda o doente no sofrimento sem que se lhe possa entender de imediato as razões causais profundas, que estão nos estados interiores de desagrado e inconformação com as provas da existência. Algumas de suas facetas são a autopiedade, irritação, tendência agressiva, revide, aspereza, amargura, rigidez de caráter, depressões, aversões a locais, assuntos e pessoas, pessimismo, antipatia, perfeccionismo, deficitária auto-estima, bloqueio do afeto, revolta e até ódio; fatores esses que levam a extremas "pressões psíquicas" decorrentes de faixas mentais de ansiedade e preocupação confirmando um caso de auto-obsessão, em muitas ocasiões, seguidas de influenciações de outras mentes desencarnadas.

Apresenta-se como situação comum nos dias atuais, em que a ilusão insufla a mentira e convence os incautos a  escravizarem-se a modismos e estereótipos sociais de consumismo, sob a égide do materialismo.

Revoltados com o corpo, abatem-se sob o sentimento do azedume em síndrome de inveja ante as infelizes comparações com aqueles que desfilam nas bajuladas passarelas públicas da elegância e da beleza.

Inconformados com a condição social, permitem-se a aspereza ante perdas e insucessos ou os atraem, quando enleiam-se por raciocínios que lhes fazem sentir injustiçados e “sem sorte”.

Infelizes com as uniões matrimoniais, homens e mulheres azedam o clima do lar em declarada “guerra do coração” por não conquistarem as expectativas alentadas com o enlace.

Inveja, perdas e expectativas não atendidas são pólos de atração para a insatisfação que se transforma em ingratidão, raiva, desânimo e desequilíbrio.

“Provas-surpresas” são outra fonte frequente, quando a criatura é colhida por fatos inesperados e periódicos, aferindo sua resistência e inteligência intrapessoal para conduzir as emoções às melhores possibilidades no encontro das soluções perante os revezes.

Azedume é atestado de escassa inteligência emocional ou incapacidade de controle e vigilância sobre os patrimônios da afetividade. As neurociências, no futuro, constatarão nosologias neurológicas provenientes dessa “rebeldia com a vida”, e a psiquiatria acatará essa”neurose original” como etiologia presente nos capítulos da distimia crônica...

Não bastasse a sanha infelicitadora para quem o cultiva, o azedume é “contagioso”. Epidemia hodierna crescente que surge em grupos através de sinergia e “simbiose-indutora”. O clima quase generalizado de descontentamento dilata-lhe a ação estabelecendo psicosferas acres, com teores energéticos que dispõem a variados distúrbios físicos, dolorosa pressão mental e “estranhos sentimentos” na convivência. Tais climas são predisponentes à perpetuação do contágio, um “temperamento” epidêmico!

Nos grupos, as pessoas acometidas pelo azedume agudo evitam conviver, ou se o fazem, recheiam-na de limites desnecessários e distanciadores, empobrecendo as relações, afastando uns e causando desgostos e agastamento a outros, sendo que ela própria, em crise íntima, desconhece estar sob seu domínio, sentindo incômodos inexplicáveis com os quais sofre em larga escala.

O estudo da referência acima de O Livro dos Médiuns assinala três reflexos da obsessão sobre aqueles que convivem com o obsidiado: hostilidade dos sentimentos, perversão do senso moral e turbação da harmonia.

Com o azedume não é diferente. Provoca maus sentimentos, subtrai força moral e destrona a harmonia naqueles que, invigilantemente, não adotam os antídotos da caridade na vida interpessoal com os que caíram nas malhas da "azedação psíquica".

Adotemos nas células de labor espiritual os cuidados imprescindíveis com essa epidemia de "cansaço de viver" ou "estresse do espírito", que dormita na incessante postura de reclamar e revoltar com o que se é e com o que se tem.

Azedumes em quaisquer circunstâncias precisam de nosso carinho e siso moral para trazermos sua vítima à sobriedade novamente, ampliando-lhe a visão sobre as bênçãos que a vido o "brindou", mas que ele ainda não descobriu ou esqueceu.

O serviço de resgatar essa lucidez terá resultados positivos quando assume a palavra de orientação, preferencialmente de alguém que superou lutas com as insatisfações comuns da existência, a fim de acenar com caminhos que tocarão o afeto dos descontentes e os chamarão para a conduta de determinação e fé n o futuro melhor, seguidos de muito trabalho, dia após dia, cumprindo o dever sem fugir das responsabilidades assumidas antes do renascimento corporal.

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Amigos de ideal,

além das considerações expostas, vale ressaltar que a transformação interior, assumida com decisão e comprometimento, costuma levar o espírito a uma espécie de "convalescença moral" ou "tristeza psíquica", por um período mais ou menos longo, em razão da abstinência dos interesses pessoais enfermiços e das novas metas que agora foram recém-aderidas.

Nessa etapa a vida afetiva pode ficar comprometida por episódios de azedume e sisudez, alimentados pelo próprio orgulho que não se extingue de vez. Um saudosismo do passado assoma-se como resquício mórbido no psiquismo.

Atentemos, portanto, para esse tema e não confundamos ciladas e reações de desencarnados com vivências que, independentemente de forças espirituais, podem trazer-nos muitos desacertos na rotina dos dias em razão  e recusarmos, em franca rebeldia, as inibições provacionais construídas por nós mesmos em vidas antecessoras ou nos atuais descuidos da imprudência, da inconsequência e da distração com os deveres.

Atenção para as “pressões psíquicas” e medidas de segurança em relação à “epidemia de azedume” serão fontes protetoras do afeto, mantendo-nos isentos de carregar, desnecessariamente, as correntes inferiores da infelicidade alheia, que está presente em quase todos os lugares.

sábado, 23 de maio de 2020

Etapas da Alteridade

Livro: Mereça Ser Feliz
Autora Espiritual: Ermance Dufaux

Capítulo 19

“Necessária é a variedade das aptidões, a fim de que cada um possa concorrer para a execução dos desígnios da Providência, no limite do desenvolvimento de suas forças físicas e intelectuais.”

O Livro dos Espíritos – Questão 804

Alteridade, uma palavra que merece atenção nos programas de educação e melhora à luz do Espiritismo humanitário.

Consideremo-la como sendo a singularidade alheia, o distinto, aquilo que é “outro”, a diferença que marca a personalidade de nosso próximo.

Nas abordagens filosóficas a alteridade tem conotações de rara beleza e profundidade demonstrando a importância da diversidade humana. Entretanto, interessa-nos mais de perto, seu enfoque ético na convivência.

O trato humano com a diferença, da qual o outro é portador, tem sido motivo para variados graus de conflitos e adversidades. Inclusive entre os seareiros da causa espírita observa-se o desafio que constitui estabelecer uma relação harmoniosa e fraterna, quando se trata de alguém que não pensa igual ou que foge aos convencionais padrões de ação e pensamento, perante as tarefas promovidas nos círculos doutrinários.

Frequentemente, a dificuldade em manter a fraternidade com as diferenças e os diferentes tem ocasionado um lamentável fenômeno comportamental na sociedade: a indiferença. A indiferença é a negação da diferença; o outro não faz diferença nenhuma, é um bloqueio deliberado ou inconsciente ao distinto, àquilo que não é o “eu”. Não havendo disposição ou mesmo possibilidade de compatibilidade entre aptidões ou no terreno do entendimento, adota-se a exclusão afetiva como suposta solução para os embates do relacionamento. Leves agastamentos e decepções arrefecem as expectativas e as frágeis amizades levando muito facilmente as criaturas à mágoa e mesmo ao revanchismo.

Conviver é, de fato, um desafio. A humanidade terrena, nesse início do terceiro milênio, começa a se preocupar em delinear nos seus projetos educacionais a habilidade de "aprender a conviver" como um dos quatro magistrais pilares para todos os conteúdos das escolas do mundo. Muito relevante essa medida, tomando por base que esse será o milênio do homem interior, em contraposição aos últimos mil anos que fundamentaram a era do homem exterior, o homem das conquistas para fora, sendo agora o momento das conquistas e vitórias íntimas: a era do amor falado, sentido e aplicado.

A indiferença provoca uma quase total ausência de solidariedade nas relações entre os homens. O egoísmo é o responsável por essa calamidade da vida humana, levando ao "esfriamento da sensibilidade" ante tanto desrespeito e violência.

Compreender as etapas da alteridade nos mecanismos afetivos, sob o prisma do progresso espiritual, é fundamental para procedermos a uma auto-avaliação de nossa posição íntima.

Delineemos essas etapas do crescimento moral e espiritual em três: primeiro o desejo de melhora, posteriormente a interiorização e finalmente a transformação. Em cada uma dessas vivências dilata-se a consciência para uma concepção mais apurada daqueles que jornadeiam conosco no carreiro das experiências de cada instante. Em cada uma, a singularidade "daquele que é outro" toma uma conotação de conformidade com a maturidade afetiva e moral de cada um.

Antes de analisarmos as características pertinentes a cada passo, deixemos claro que todo processo de mudança interior obedece a esse espírito de sequência natural. Sem desejo de melhora não existe motivação para quaisquer empreendimentos de renovação. Sem a etapa da interiorização não se deflagra o conhecimento fidedigno do trabalho a ser efetuado na intimidade de si mesmo. E a transformação é o resultado e o objetivo para o qual todos caminhamos na evolução. Esse dinamismo interior é processual e ninguém estagia em uma ou outra etapa separadamente. No entanto, para efeitos didáticos, analisemos o que costuma suceder-se na vida afetiva ao longo dessa caminhada, dentro da relação eu e o outro, para quantos tomam contato com as luzes do Espiritismo:

Desejo de melhora – período em que nos ocupamos pelas ações no bem. Etapa marcada pelo conhecimento espiritual criando conflitos íntimos, impulsionando novos posicionamentos. A necessidade de mudança será proporcional ao nível de maturidade de cada criatura. Nessa fase o outro ainda é uma referência de incômodo, disputa e ameaça, quase um adversário para quem são dirigidas cobranças não suportáveis a si mesmo. Tal estado psicológico instiga o julgamento inflexível através da análise para fora. O principal traço afetivo é a simpatia pelos iguais, aqueles que pensam conforme pensamos, que esposam pontos de vista idênticos. Embora seja um instante de muita "convulsão” nas metas e propósitos de vida, é quando o homem se define por uma nova opção de melhora com base na vida futura, na imortalidade e na ascensão. O convite ético do Espiritismo chega-lhe como consolo e também um abalo nas convicções. Mesmo o próximo não sendo ainda respeitado na sua diferença, trata-se do início da morte da indiferença. Apesar de não aceitar os diferentes, já se incomoda com eles, querendo modificá-los: um efetivo sinal de mutação na forma de sentir. Afetivamente não é uma postura ajustada, mas é uma estrada que se abre para superar a tendência de marginalização e impulso para repensarmos a nossa individualidade, até alcançarmos a interiorização.

Interiorização – se na fase anterior a prioridade era a ação, aqui o aprendiz das questões do espírito volta-se para estudar suas reações íntimas. O conhecimento sai da esfera puramente intelectiva para o campo das reflexões sentidas, motivando a busca de estados mentais de harmonia. O “outro” promove-se à condição de espelho das necessidades de nosso aperfeiçoamento, uma extensão de nós próprios que deflagra o processo educativo; afetivamente toma a conotação daquele que nos leva a novos e mais elevados sentimentos. Esse é o estado psicológico da busca de entendimento e do autoconhecimento, uma análise para dentro. Há uma dilatação da sensibilidade para com a diferença alheia, seguida de mais intensa aceitação, disposição para o perdão e a concórdia. Começa-se assim a compreensão da importância que tem a diversidade de aptidões. O desigual passa a ser visto como alguém importante para o nosso crescimento pessoal. A maleabilidade, a assertividade, a empatia e outras habilidades emocionais passam a ser usadas com mais intensidade. Todas essas posturas sedimentam valores novos no rumo da transformação.

Transformação – os valores interiorizados atingem o campo dos sentimentos, é a mudança real. O outro é alteridade, distinção; é o estado psicológico do amor em que a diferença do outro passa ser incondicionalmente aprovada e, mais que isso, compreendida como indispensável lição de complementariedade. Nessa etapa aprende-se não só a aceitar os diferentes como se consegue aprender com eles, amá-los na sua maneira de ser. É a etapa da felicidade. O outro jamais poderá ser motivo para decepções e mágoas. Ainda que as tenhamos saberemos como lidar bem com essas emoções. A autonomia e a liberdade não permitem amarras e dependência, opressão e sentimentalismo. Aprende-se o auto-amor e por consequência ama-se sem sofrimento, sem sacrifícios; ama-se porque o amor é preenchedor e isso, definitivamente, basta.

Jesus, na Parábola do Semeador, quando fala dos vários terrenos em que foram distribuídas as sementes, deixa-nos um tratado sobre a alteridade e suas etapas. Os solos da narrativa correspondem aos níveis evolutivos em que cada qual dará frutos, conforme suas possibilidades.

O aprendizado da reforma íntima, inevitavelmente, percorre esses degraus de aprimoramento. A análise sincera dos sentimentos que se movimentam na esfera dos corações nessa marcha de crescimento nos permitirá proceder ao conhecimento de si próprio com mais êxito.

Não esqueçamos, em nosso favor, que em qualquer tempo e lugar, diferenças não são defeitos, os diferentes necessariamente não são oponentes, e a indiferença é o recolhimento egoísta do afeto na escura masmorra do desamor. Nossa harmonia é construída no cultivo das virtudes da indulgência, da fraternidade e do acolhimento.

Ação, reação, transformação: caminhos da alteridade.

Morte da indiferença, autoconhecimento, amor: caminhos da felicidade.

Em quaisquer etapas: sempre alteridade na erradicação do personalismo.

Hosanas às diferenças e aos diferentes!

sexta-feira, 15 de maio de 2020

Vício de Prestígio

Livro: Mereça Ser Feliz
Autora Espiritual: Ermance Dufaux

Capítulo 18


“O choque, que o homem experimenta, do egoísmo dos outros é o que muitas vezes o faz egoísta, por sentir a necessidade de colocar-se na defensiva. Notando que os outros pensam em si próprios e não nele, ei-lo levado a ocupar-se consigo, mais do que com os outros. Sirva de base às instituições sociais, às relações legais de povo a povo e de homem a homem o princípio da caridade e da fraternidade e cada um pensará menos na sua pessoa, assim veja que outros nela pensaram. Todos experimentarão a influência moralizadora do exemplo e do contato. Em face do atual extravasamento de egoísmo, grande virtude é verdadeiramente necessária, para que alguém renuncie à sua personalidade em proveito dos outros, que, de ordinário, absolutamente lhe não agradecem.”

O Livro dos Espíritos – Questão 917 – Fénelon


Acostumamos enunciar nos meios espíritas que somos orgulhosos. Admitimos essa imperfeição, mas temos que reconhecer que ainda somos inaptos para detectar seus traços em nossa personalidade. Façamos então uma singela análise em uma de suas mais variadas manifestações sutis. Escolhamos a esfera da vaidade!

O perfil moral dos habitantes da Terra guarda uma feição comum que é a necessidade de valorização e reconhecimento pessoal, o que seria muito natural não fosse nossa paixão no egoísmo. No entanto essa necessidade tem constituído uma tormenta social: considerando que todos querem ser prestigiados, quem ficará para prestigiar?

Pouquíssimos são os que se encontram sensibilizados para a arte da alteridade, dispostos a destacar conquistas e valores no outro. Esse é o choque do egoísmo a que se refere Fénelon: cada um querendo que o outro pense nele sem se preocupar com os demais, oferecendo motivações para o descaso e o egocentrismo.

Observe o amigo da Terra um exemplo. Se você iniciar uma narrativa que destaque seus valores individuais ou algum episódio de êxito na sua existência, quem estiver lhe ouvindo logo iniciará um processo similar, sem sequer ocupar-se em ouvir sua história ou dela tirar algum proveito. É como diz Fénelon: "Notando que os outros pensam em si próprio e não nele, ei-lo levado a ocupar-se consigo, mais do que com os outros."

O vício de prestígio consome a criatura em disputas inglórias e imaginárias por apreço e consideração. O mundo mental desses viciados desgasta-se em busca da aprovação de todos, e quando alguém não lhe rende as homenagens e tributos esperados, é considerado um opositor ou indiferente. Seu principal malefício é essa espera de aceitação e consideração incondicionais, como se todas as pessoas tivessem a obrigação de enaltecê-lo.

Como é portador de muita suscetibilidade, pequenas desatenções e discordâncias são recebidas pelo viciado com revolta e mágoa suficientes para instalar um "pânico de revolta íntima", como se mentalmente indagasse: "por que esse súdito não me homenageou?"

Assim como existe a dependência química de tóxicos, existe a dependência psíquica de evidência e reconhecimento individual. Esse tipo de viciado é escravo da auto-imagem exacerbada que faz de si mesmo.

As causas desse vício podemos verificar na infância, quando a criança é levada a níveis abusivos de repressão no lar, dependendo de aprovação para tudo, tornando-se insegura, sem autoconfiança, crescendo como um adulto frustrado; outro tanto, de forma mais intensa ainda, verificamos as raízes desse mal nas pregressas existências, quando a alma acostumou-se aos faustosos títulos sociais e às honras individualistas que sempre lhe alimentavam o ego insaciável, na sedimentação da "cultura do melhor em tudo".

A educação na sociedade moderna destina-se ao aplauso, ao êxito, e raramente educa-se para saber perder ou lidar bem com as derrotas e críticas. Treina-se para a passarela do sucesso e a necessidade de aprovação e reconhecimento social, sem se preparar para o auto-amor. O vício de prestígio é um sintoma claro de que não nos plenificamos conosco próprio, de ausência de auto-realização, de amor a si próprio. Se nos amássemos, não teríamos tanta dependência de opiniões e atitudes alheias.

O que impulsiona esse vício, mais que a necessidade de ser aceito, é o medo da rejeição: um dos sentimentos mais camuflados e comuns da humanidade, que pode ser estimulado pelas causas acima citadas.

Esse cenário moral é um convite imperioso para que trabalhemos pela formação de um “perímetro” de relações sinceras, onde se possa forjar o caráter objetivando a aquisição dos hábitos altruístas e o desprendimento dessa neurótica necessidade de tributos personalísticos. Recordemos a oportuna recomendação de Jesus para convidarmos coxos e estropiados quando dermos um banquete... (1)

Tal quadro de indigência espiritual e afetiva induz-nos a grave reflexão: estariam nossos círculos de Espiritismo Cristão atendendo a essa construção do ambiente regenerativo de nossas almas? Ou será que, mesmo nas frentes de serviços com Jesus, estaríamos cultivando as amizades de conveniência que nos garantam a “nutrição da bajulação”, mantendo os feudos de glórias pessoais?


O momento de transição da humanidade é instante de árduas comoções. O egoísmo precisa ser extirpado e para isso somos todos convidados, de uma ou de outra forma, a descer dos “tronos” da falsa superioridade ou sair da “cabeceira” das decisões individualistas.

É tempo de abnegação e renúncia!

Convenhamos: nossa parcela de personalismo é enorme, mesmo nas lições de amor às quais nos afeiçoamos junto aos labores doutrinários. Anotemos assim algumas de suas rotineiras formas de se apresentar, a fim de matricularmo-nos numa auto-avaliação sobre a possibilidade de ainda nos encontrarmos prazerosos com o vício do prestígio pessoal:

- Aversão a crítica.

- Mendicância de reverência.

- Gosto pela pompa.

- Imposição de pontos de vista.

- Melindre nas discordâncias.

- Mágoa alimentada.

- Importância conferida ao nosso nome.

- Apego a tarefas.

- Vício do elogio.

Com todo o respeito que devemos uns aos outros, não podemos deixar de assinalar que entre nós, os devotos da causa espírita, encontram-se lamentáveis episódios de vaidade. Alguns corações, mais doentes que mal intencionados, não conseguiriam "manter-se espíritas" sem a reverência coletiva!!!...

Contudo, a "vitrine da fama" não foi feita para os discípulos do Cristo, e nossa maior conquista espiritual é o poder de negar a si mesmo. O trabalhador em busca de reconhecimento pessoal efetivamente não serve à causa de Jesus.

Fénelon refere-se à força moralizadora do exemplo como forma de renovar as relações de homem a homem. Certamente essa indicativa é admirável receita para nossa recuperação frente ao descontrolado vício de ser valorizado. E para iniciarmos um processo educativo nesse sentido, deixemos uma dica preciosa na mudança dos nossos hábitos: comecemos a falar menos de nós e estejamos mais atentos em prestigiar o outro...

1. Lc 14: 12 a 14

quinta-feira, 7 de maio de 2020

Camuflagens e Projeções

Livro: Mereça Ser Feliz
Autora Espiritual: Ermance Dufaux

Capítulo 17

“Além dos notoriamente malignos, que se insinuam nas reuniões, há os que, pelo próprio caráter, levam consigo a perturbação a toda parte aonde vão: nunca, portanto, será demasiada toda a circunspeção, na admissão de elementos novos.”

O Livro dos Médiuns – Capítulo 29 – Item 338

As transferências e as camuflagens na esfera dos sentimentos é fenômeno complexo e rotineiro nos relacionamentos.

Conhecidos pela psicanálise como mecanismos de defesa do
inconsciente, as projeções e camuflagens afetivas ocorrem em razão de processos educacionais da infância centrados no ego, ou por impulsos de núcleos afetivos consolidados em outras reencarnações, ou ainda pelo desconhecimento de si mesmo, sendo capazes todas essas causas de gerar extensas lutas íntimas e trágicas provas no quadro dos envolvimentos passionais.

O reflexo mais eminente da presença de semelhantes defesas psíquicas é a perda da autenticidade humana. Na medida em que vai amadurecendo física e psicologicamente, a criança, o jovem e mais tarde o adulto aprendem a esconder-se de si e do mundo, gerando um complicado mecanismo para atendimento dos apelos sociais e paternais, quase sempre, em desacordo com sua autêntica personalidade.

Perdendo a autenticidade o ser não se plenifica, arroja-se no desajuste ensejando o ebulir de culpas de outras vidas que não foram absorvidas, vivendo infeliz e sob intensa pressão interna em neuroses de longo curso.

Dependência, ciúme, possessividade e medo comandam as atitudes em direção a relações imaturas, sofríveis, pobres de confiança e caráter, ensejando a potencialização dessas camuflagens psicológicas junto aos grupos de ação do ser humano.

Os "esconderijos psíquicos" têm como origem mais saliente o medo: medo de si mesmo, medo de seus verdadeiros sentimentos. Não havendo coragem suficiente e nem desejo para tal, a criatura foge do auto-encontro, incapacitando-se, a cada fuga, em dominar sua vida interior, deixando escapar a chance de olhar-se no espelho da consciência e cuidar de sua "realidade transitória", resgatando a sua "realidade natural e Divina".

Esse encontro, porque é doloroso, quanto mais for adiado mais a constrange a ombrear com um "eu falso" que lhe impinge sentimentos de desconforto e falsidade, caso possua um mínimo de formação ética, ou então faz-lha penetrar na conduta degenerada caso ela desista de entender o que se passa consigo mesma, ante o caleidoscópio de seus sentimentos e pensamentos confusos e inconstantes acerca do querer e do gostar.

Nas relações espíritas notabiliza-se um fato específico, credor de estudo e meditação.Camuflam-se desejos sexuais e afetivos, que são transferidos para outras vivências reencarnatórias, escondendo o verdadeiro sentimento de sua presente existência, evitando admiti-lo. Sentimentos esses que maceram e doem na acústica do coração e da consciência, mas que, queiramos ou não, despontam na vida de relação.

Muitos amigos queridos do ideal, utilizando-se de expedientes humorísticos pouco sérios, zombam desses sentimentos tratando-os com brincadeiras, a fim de não ter que olhar para os mesmos com a seriedade que eles merecem em favor da própria paz. Frases que parecem ingênuas podem, em muitos casos, carregar dramas de largo curso, tais como: "já devemos ter sido muito íntimos", "aquela pessoa deve ser minha alma gêmea", "tenho uma afinidade especial com tal coração", "sinto como se ele fosse meu pai", "há uma coisa muito forte que nos une, devemos ter vivido juntos"...

Vigiemos semelhante comportamento, perguntando-nos, com honestidade, qual a certeza e fundamento lógico temos para afirmar que as raízes de tais emoções pertencem ao passado de outras existências corporais. Para vós outros que estais na carne, agraciados com o esquecimento cerebral, torna-se mais difícil ainda tecer afirmativas verdadeiras sobre semelhante ocorrência. Ainda que sejam sentimentos ou lembranças de outras vidas, se elas se encontram ativas na vida presente, importa o que se sente hoje, devem ser elaborados como pertencentes à atualidade.

Se tais incursões mnemônicas são permitidas é com função educativa e não para que tenhamos um “lugarzinho na mente”, como se fosse um álibi com o qual possamos justificar, uns perante os outros, tudo aquilo que sentimos e não deveríamos. Isso não nos torna menos responsáveis pela vida afetiva. Assumamos com responsabilidade os nossos sentimentos, conhecendo-lhes os motivos, olhando para eles de frente, sem temor ou vergonha. Essa a primeira condição para os transformarmos em valores espirituais que impulsionam a evolução.

Entendamos por assumir sentimentos, o serviço de autoconhecimento e auto-aceitação dos mesmos em nós com finalidades superiores, longe do “assumir” de alguns profissionais levianos e descuidados que induzem seus pacientes a admitirem e viverem intensamente o seu “lado sombra”.

Como espíritas lúcidos, ao contrário, vamos assumir o nosso “lado nobre e Divino”, esquecido ou ainda não devassado pela sonda do autodescobrimento.

Tenhamos sobriedade e dispamos dessas máscaras perniciosas do relacionamento.

Rompamos com essas “fantasias de outras vidas” e definamos o processo das afinidades e desafeições, buscando entender as razões atuais de tais ocorrências do coração. Entendamos as causas presentes das antipatias e simpatias e honremo-Ias com uma conduta ética e ilibada.

Não podemos deixar de nomear essa situação como uma atitude infeliz. Ao ficar camuflando sentimentos que temos uns com os outros, atribuindo-os a existências anteriores, perdemos o ensejo responsável de travar contato com nosso mundo profundo e subjetivo em busca do autêntico amor e dos necessários ajustes emocionais que fazem parte do aprimoramento pessoal.

Nossa primeira tarefa ao depararmos com os sentimentos que não gostaríamos ou deveríamos estar sentindo, em favor do bem alheio e de nós próprios, é estudar nossas reações e edificar as soluções adequadas ao melhor encaminhamento dos pendores da afetividade.

Por sua vez, as projeções são mais complexas ainda, porque, além dos fatores causais pertinentes às camuflagens, elas contêm ainda uma outra matriz infelicitadora: a obsessão.

O jogo das aparências entre os homens, mormente nesses dias de mídia exacerbada e desumana competitividade, faz com que a "comparação patológica" estabeleça complexos e síndromes "sui generis" no capítulo das doenças do afeto e do psiquismo. Elencando valores fictícios e fugazes como a beleza perfeita, o status cultural e social, a felicidade pela posse e o sucesso no amor pelo sexo, a sociedade, desbaratada com o fenômeno da vaidade e da aparência, impõem que as pessoas se comparem sempre "para cima" e nunca "para baixo", ou seja, deseja-se o que o outro tem de melhor - o que seria muito natural não fossem os sentimentos inferiores e os complexos que se formam a partir dessas confrontações. Na mira das comparações, não havendo a possibilidade de adquirir ou ser como o outro, estabelece-se frustrações e conflitos interiores que, não sendo bem administrados, podem raiar para neuroses múltiplas.

Entre espíritas, já que os valores morais e os bons exemplos são estimulados, as referências costumam surgir no campo das realizações espirituais. Constatadas as possibilidades alheias no bem, a criatura com menos experiência, se não administrar bem suas projeções, estabelecerá comparações que conduzirão à falsa modéstia ou ao desânimo, confrontando sua suposta incapacidade em função da desenvoltura do outro, projetando sua limitação sem absorver o exemplo alheio.

Muitas vezes ocorre um processo de idealização no outro daquilo que não conseguimos êxito no relacionamento conjugal, profissional ou cultural, levando a sentimentos que são nomeados como "velhas afinidades", quando, em verdade, estamos locupletando com o outro ou desejando intensamento sua participação em nossa vida para fruir com ele o que lhe pertence no terreno das conquistas, incensando a princípio uma amizade e, mais adiante, possivelmente, um relacionamento amoroso. É a realização no outro daquilo que gostaríamos de ser, um processo sutil que pode tornar-se dolorosa prisão de compensação e escravização afetiva, levando a uma "coagulação dos sentimentos".

Outra faceta mais conhecida das projeções é a dos defeitos, nas quais vemos nossas imperfeições mais marcantes e menos admitidas para nós na pessoa do outro.

A valorização das próprias potencialidades, na medida em que são descobertas, é a receita para lidar com as projeções de modo proveitoso para o crescimento pessoal. Aprender a estabelecer comparações com o mundo subjetivo e real das criaturas, a essência do ser humano, o que de fato ele é, sua realidade profunda, eis a grande meta a que devemos devotar, conforme assevera Antoine de Saint-Exupéry, "o essencial é invisível aos olhos".

Enquanto mantivermos sintonia com as carapaças sócio-humanas estaremos apenas vivendo na superficialidade das emoções, atraídos para realidades fugazes, quais crianças que tornam brinquedos umas das outras e logo os largam para novas investidas sem rumo e objetivo!

Somente treinando e desenvolvendo a sensibilidade enobrecedora estaremos aptos a fazer comparações e projeções mais sadias, promotoras de paz e contentamento espiritual, fruto da resignação dinâmica, ativa.

Eduquemo-nos para essa viagem ao mundo subjetivo do Espírito, em plena carne, porém lúcidos e em estado de alerta mental. Aprendamos a comparar-nos com o velho, o doente, o sábio sem diplomas, a quem ninguém quer se comparar, ou ainda com aqueles que agora estão no arrependimento sobre um leito de dor, sem tempo e sem mais opções de progresso, esperando a presença da morte para ajuizar sobre seu futuro. Comparemo-nos com aqueles que agora se encontram no ocaso da vida, avaliando sua existência com enorme sentimento de perda, asilando uma frágil esperança de paz para sua consciência. Avaliemo-nos no momento atual, frente àqueles que renascerão em situações mais dolorosas e que revoltam e odeiam a vida, dispostos a qualquer ato infeliz.

Reflitamos sempre, em nossas comparações, nos que têm menos, nos menos apreciados pelo mundo social, elastecendo a sensibilidade para o que se passa invisível aos olhos comuns, e perceberemos lições estimuladoras e preenchedoras de júbilo com o que somos e temos.

Aliás, sem exageros, o que destacamos de menos bom em nosso próximo quase sempre trazemos em nós mesmos. Se não for uma experiência do presente poderá ser uma imperfeição de outrora que, embora vencida ou dominada, tem registros claros na intimidade que facilitam percebê-la em outras pessoas na atual existência, com fins reeducativos.

Vejamos as camuflagens e projeções como etapas do aprendizado afetivo, fenômenos comuns do sentimento humano, mas que carecem educação e responsabilidade para serem conduzidos a fins superiores. São processos de defesa da mente para abrandar a angústia da inferioridade humana que com o tempo superaremos.

Na medida em que lhes entendemos a forma de exprimir na personalidade, dilatamos as chances de autoconhecimento, pois são “pistas” sobre nós mesmos. O que tentamos esconder ou projetamos no mundo das formas são expressões do mundo profundo e podem ser fortes aliados no bom combate, naquele que consiste em lutarmos conosco mesmo, transformando hábitos edificando sentimentos mais afinados com o verdadeiro amor, proposto pelo Evangelho, e com a rota de espiritualização apontada pelos conceitos espíritas.

Mediante a colocação do codificador na referência acima, compreendemos bem a importância da circunspecção de elementos novos em nossos grupos, em se considerando o desconhecido mundo interior.

Circunspecção, no entanto, deve significar acolhimento fraternal para propiciar as condições ao novel frequentador para ter as possibilidades de fazer esse mergulho no mar de si mesmo, sem afogar-se nos sentimentos de insuficiência, decepção e tristeza.

Circunspecção quer dizer "exame demorado, atenção, prudência", o que nos leva a concluir que esse acolhimento, essa recepção é um serviço do tempo para o bem de todos, mas não pode deixar de ser feita, porque se analisarmos bem, o movimento espírita é um somatório geral de todas as nossas qualidades e esforços, mas também das projeções e camuflagens. Pensemos e debatamos, portanto, o quanto tudo será diferente quando aprendermos a circunspecção espírita, fazendo das agremiações doutrinárias uma escola do espírito destinada a desenvolver condições íntimas para a humanidade ser mais feliz e autêntica!