quinta-feira, 27 de abril de 2017

Cisão de Reino 1

Livro: Escutando Sentimentos
Capítulo 14*

"Os Espíritos em expiação, se nos podemos exprimir dessa forma, são exóticos, na Terra; já tiveram noutros mundos, donde foram excluídos em consequência da sua obstinação no mal e por se haverem constituído, em tais mundos, causa de perturbação para os bons."

O Evangelho Segundo o Espiritismo - Capítulo 3 - Item 14

A presença do instrutor Calderaro infundia-nos raro sentimento de responsabilidade e aproveitamento. O trabalho ingente daquela hora não comportava muitas digressões filosóficas, ainda assim ouviríamos a palavra lúcida do mensageiro do amor por alguns instantes.

Passavam das duas horas em plena madrugada na Terra. Os últimos preparativos estavam sendo tomados para a incursão em regiões de pavor e gládio na erraticidade. O portal de saída do Hospital Esperança, onde nos reuníamos para o mister, encontrava-se como ativo dispensário de bênçãos através de variados trabalhos.

Chegava o momento de demandarmos o exterior do Hospital. Dez corações que serviram à causa espírita integravam a equipe na condição de discípulos dos serviços socorristas. Dilatavam seus horizontes sobre os pátios de dor com os quais se corresponderam durante a vida física, na condição de dirigentes de sessões mediúnicas.

Calderaro levar-nos-ia aos pântanos da sofreguidão no intuito de resgatar "lírios do Evangelho" perdidos na noite escura da amargura. Almas que tombaram sob o peso das responsabilidades com a mensagem do Cristo no transcorrer dos evos.

Após comovente prece, manifestou o instrutor:

- O Espírito em sua peregrinação evolutiva, desenvolveu mecanismos de mutação para o egoísmo. O instinto de posse é um dos alicerces de incontáveis manifestações da nossa doença de egocentrismo. Da necessidade instintiva de se conservar, derivou um complexo sistema de cautela, que promoveu o medo como defesa natural às iniciativas de acumular e possuir. Com o medo as engrenagens da vida mental dinamizaram "grades psíquicas de segurança" com as quais o homem procurava defender-se do receio da rejeição, do abandono e da perda. Consumando tais "celas psicológicas", a criatura se desumanizou através da atitude de crueldade, dizimando quantos supusesse serem ameaças à sua "tranquilidade". Apesar de toda essa movimentação, ninguém em tempo algum conseguiu burlar as Leis da Natureza. Submissos a ela, mas sem consciência de seus defeitos, o ser humano, em tempo algum, logrou anular em seu coração os dilacerantes e constrangedores sentimentos de vulnerabilidade, falibilidade e abandono. Sistemas de defesa do ego aglutinaram-se em potente reunião de forças para a "negação" e nessa luta interior em milênios de fuga, surgiu a "exaustão da alma", muito bem assinalada na rota evolutiva do Filho Pródigo, quando diz: E, havendo ele gastado tudo, houve naquela terra uma grande fome, e começou a padecer necessidades. (1)

Instado a olhar para suas necessidades, o Filho Pródigo, que representa a história evolutiva de todos nós guindados aos campos de aprendizado da Terra, sentiu os efeitos deletérios do esbanjamento da Herança Paternal. Trazia em si próprio, assim como cada um de nós, o enraizado complexo de inferioridade - expressão de um sistema afetivo aos frangalhos. A passagem assinala: Pai, pequei contra o céu e perante ti; Já não sou digno de ser chamado teu filho; faze-me como um dos teus jornaleiros. (2)

O quadro de insatisfação íntima é o cansaço dessa longa trajetória de desditas. Cansaço de viver! Uma sequela inevitável dessa longa noite de ilusões! A rejeição, o abandono e a perda tão temida em relação aos supostos opositores da caminhada passaram a ser consumidos pela mente como um procedimento natural para conosco mesmo - as feridas evolutivas do Ser. Rejeitando nossa condição íntima, abandonando nossos autênticos sentimentos e perdendo o contato com a vida abundante. Consolidaram-se o desamor e a autocrueldade, expressada através da punição inconsciente, do sentimento de culpa e do vazio existencial. Tais "pisos psicológicos" configuram a "loucura contida" em níveis diversificados de depressão e ruína mental.

Reencarnações repetitivas e pouco frutíferas marcaram a sinuosa senda das vias terrestres. No entanto, no interregno entre as sucessivas vivências corporais, a criatura experimenta infinitas lições que, inevitavelmente, influenciam seu psiquismo no regresso à matéria. O homem terreno jamais compreenderá os transtornos e tormentas da vida mental sem debruçar-se sobre a natureza dessas ocorrências.

Visitaremos hoje as adjacências de um dos mais antigos vales da maldade hierarquizada na Terra, o Vale do Poder. A exemplo das cidades no orbe, esse pátio de dor e perversidade tem seu núcleo central com imponente estrutura urbanística. Em sua periferia, entretanto, encontram-se os "lixões", termo empregado pelos mandantes da região. São antros de dor que se organizam no aproveitamento das "escórias" - como são conhecidos os "ex-assalariados" da organização que não apresentam as "qualidades" desejáveis aos intentos tenebrosos. Ali se estruturam os "gavetões", "calabouços", "lagos de enxofre", "câmaras de viciados" e outros variados locais que demonstram a dificuldade do Espírito em consumar sua humanização.

Estudos Maiores feitos pelos Condutores Planetários denominam essa situação de "regressão ou involução" como cisão de reino, o desejo do Espírito em não assumir sua condição excelsa de homem lúcido e consciente perante o universo. Condição essa bem delineada na passagem evangélica em estudo quando assevera: E desejava encher o seu estômago com as bolotas que os porcos comiam, e ninguém lhe dava nada. (3)

Fazendo uma breve pausa como se investigasse a alma dos trabalhadores que nos acompanhariam em serviço, Calderaro declinou:

- Os meus irmãos que ainda não conhecem tais locais de expiação poderão sentir, com intensidade energética, a natureza das emoções que pairam nessas psicosferas, razão pela qual o sentimento de unção deve nos guiar os passos. A predominância vibratória da indignidade é determinante onde visitaremos, tomando matizes variados conforme os dramas conscienciais. Vamos aos "gavetões", um autêntico "depósitos de almas" tombadas no remorso e na culpa. São chamados "vibriões".

Esse lugar é uma referência inegável que ilustra a questão 973 em O Livro dos Espíritos, formulada por Allan Kardec aos Sábios da Imortalidade:

"Quais os sofrimentos maiores a que os Espíritos maus se vêem sujeitos?"

"Não há descrição possível das torturas morais que constituem a punição de certos crimes. Mesmo o que as sofre teria dificuldade em vos dar delas uma ideia. Indubitavelmente, porém, a mais horrível consiste em pensarem que estão condenados sem remissão."

Condenados sem remissão é a condição espiritual que conduziu tais corações ao lamaçal da derrocada interior. A terem que assumir a sensação dolorosa de vulnerabilidade, optam pela fuga, pela "regressão" a patamares de imaginária proteção e segurança nos quais "hibernam psiquicamente", uma cisão de reinos.

Vamos buscar um desses "vibriões". Um filiado à "maldade organizada" há mais de um milênio. Agora foi deportado aos "lixões", exaurido após o "esbanjamento psíquico", em consumada "segunda-morte". Sua condição é descrita em Lucas: E, tornando em si, disse: Quantos jornaleiros de meu pai têm abundância de pão, e eu aqui pereço de fome! (4)

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* Nota da autora espiritual: Para melhor compreensão desse texto, sugerimos a leitura do epílogo "Em que Ponto da Evolução nos Encontramos?", na obra "Reforma Íntima sem Martírio", por serem, ambos, estudos complementares. Ver este texto no link: https://ermance-dufaux.blogspot.com.br/2016/09/em-que-ponto-da-evolucao-nos-encontramos.html


1. Lucas 15:14
2. Lucas 15:19
3. Lucas 15:16
4. Lucas 15:17

sexta-feira, 14 de abril de 2017

Nossa Maior Defesa

Livro: Escutando Sentimentos
Capítulo 13

"Quem dizem que eu sou? - Eles lhe responderam: Dizem uns que és João Batista; outros, que Elias; outros, que Jeremias, ou algum dos profetas."

O Evangelho Segundo o Espiritismo - Capítulo 4 - Item 1

Eminentes cientistas consideram, sob a ótica materialista, que o fortalecimento do ego (ego estruturado) é a fonte da livre manifestação do homem na busca de seus reais objetivos. De fato, a criatura autônoma na perspectiva psicológica é dona de si mesma e reúne elementos para o alinhamento mental, que lhe permite fluir em suas metas.

Um ego estruturado, porém, pode levar-nos a estagiar nas experiências da arrogância, do personalismo, da auto-suficiência e da ostentação - traços de egocentrismo. Muito ao contrário quem se conecta com o self divino, capacita-se para gerenciar suas potências internas e adota a humildade como conduta, pois não sente necessidade de passar uma imagem, mas apenas ser. Tem consciência de sua real importância perante a vida. Nem mais, nem menos valor. Apenas o que realmente é; nada além, nem aquém.

Autonomia, porquanto, à luz do espírito imortal, é a habilidade de gerir bons sentimentos em relação a nós mesmos sustentando crenças, atitudes e escolhas que correspondam ao legítimo valor pessoal. É a expressão do auto-amor e o alicerce psicológico-emocional da maturidade. É a capacidade de dilatar essa conexão com o self - fonte emissora das energias do amor.

A autonomia vem da capacidade de libertar-se dos padrões idealizados, assumindo sua realidade em busca do melhor possível. Libertar-se da correnteza de baixa auto-estima proveniente do subconsciente.

A grande batalha pela autonomia não está em se libertar de pressões externas e sim das velhas programações mentais e "gatilhos emocionais" que nos escravizam aos processos de desamor e crueldade conosco. É uma mudança na forma de relacionar-se consigo próprio através do foco mental positivo.

Contra nossos nobres propósitos de iluminação, temos variados inimigos íntimos gestores de mensagens corrosivas da auto-estima e da segurança. Somente aprendendo a nos amar, conseguiremos transformar esses clichês pessimistas em respeito, reflexão, auto-avaliação e perdão.

A saúde mental surge quando nos livramos dessas estruturas internas opressoras que são impulsos, condicionamentos, complexos, tendências, clichês emocionais, clichês intelectuais, que constituem subpersonalidades ativas na nossa vida subconsciente.

Quando não reconhecemos nosso valor, vivemos à mercê dos "estímulos-evolutivos", ou seja, pessoas, lugares, guias espirituais, cargos, instituições e filosofias que nos dizem quem somos e o que devemos fazer.

Somos todos interdependentes, precisamos uns dos outros, mas não a ponto de depositar em algo ou alguém a responsabilidade de nos fazer felizes ou determinar nossas escolhas. Ouviremos a todos e refletiremos sobre tudo que aconteça, tomando por divisa o compromisso da melhoria e do crescimento gradativo. Acima de tudo, porém, devemos guardar por guia infalível os sentimentos positivos, a consciência individual.

Os bons sentimentos são portadores de orientações do inconsciente para nosso destino particular. Quando os escutamos, tornamo-nos mais úteis a Deus, ao próximo e a nós próprios.

A atitude de autonomia pode ser sintetizada na frase: entrego-me a mim mesmo e respondo por mim. Seu princípio básico é: somente eu posso dizer o que quero e interpretar através dos meus sentimentos o que realmente necessito para crescer.

Allan Kardec, dotado de excelente senso psicológico, indagou aos Luminares Guias da Verdade:

"A obrigação de respeitar os direitos alheios tira ao homem o de pertencer-se a si mesmo?"

"De modo algum, porquanto este é um direito que lhe vem da Natureza". (1)

Pertencer-se a si mesmo é adquirir gerência sobre o repositório da vida interior. Ter domínio de si próprio. Responder por si perante o Criador.

A convivência humana na Terra é caracterizada por processos emocionais e psicológicos que, frequentemente, nos afastam da Lei de Liberdade. Raríssimas criaturas escapam da submissão e da dependência em matéria de relacionamentos. Sentimentos estruturados no processo evolutivo do egoísmo ainda nos atam aos enfermiços contágios da ilusão de galgar o progresso através do outro, delegando o direito natural de pertencer a si mesmo. Com essa atitude, atolamos no apego a pessoas e bens passageiros como únicas referências de bem-estar e equilíbrio, navegando no mar da existência como descuidados viajantes ao sabor dos fatos externos, sem posse do timão dos fenômenos internos da alma.

Fomos treinados para ter medo de pensar bem sobre nós ou sobre a capacidade de gerenciar nossos caminhos evolutivos. Fomos treinados para atender a expectativas. Até mesmo em nossos grupos de amor cristão, com assídua frequência, é enaltecida a dependência e, algumas vezes, até a submissão.

A pior consequência da falta de autonomia é medir o valor pessoal pela avaliação que as pessoas fazem de nós. Por medo de rejeição, em muitas situações, agimos contra os sentimentos apenas para agradar e sentir-se incluído, aceito. Quem se define pelo outro, necessariamente tombará em conflitos e decepções, mágoas e agastamentos.

Autonomia é a maior defesa da alma porque estabelece limites, produz a serenidade, dilata a autoconfiança e coloca-nos em contato com nossas aspirações superiores.

Em algumas ocasiões, a conquista da autogerência requer a solidão e o recomeço. Às vezes precisamos de muita coragem para abandonar estruturas que construímos durante a vida e seguir os sinais que nos indicam novos caminhos. Nessa fase, seremos convocados a responder a algumas indagações originadas do medo. Conseguirei responder pelo meu futuro? Estarei dando passos seguros para meu melhoramento? Estarei fazendo escolhas por necessidade ou teimosia? Estarei fugindo de meu "projeto reencarnatório"?

Esse medo surge porque gostaríamos de contar apenas com o êxito em nossas escolhas. Adoramos respostas e soluções imediatas, prontas para usarmos. Uma leitura. Uma opinião. Uma mensagem mediúnica. Não ter riscos. Não ter que ser criticados pelos caminhos que optamos. Esse medo ainda reflete a dependência. Nessa hora, teremos que escutar nossos sentimentos e seguir. Ouvi-los não quer dizer escolher o certo, mas optar pelo caminho particular em busca da experiência sentida e conquistada dentro de sua realidade.

Esse é o "preço" que pagamos para descobrirmos quem somos verdadeiramente. Libertar-se do ego é um parto psicológico. A sensação de insegurança é eminente. Todavia, quando a alma é chamada a semelhante experiência no "relógio da evolução", a vida mental compensa essa sensação com emoções enobrecedoras que descortinam percepções ampliadas acerca das intenções mais subjetivas do Ser. É com base na intenção que o Espírito assegura seu equilíbrio e suas escolhas no vasto aprendizado da eternidade.

Essa liberdade psíquica e emocional da alma é o resultado inevitável de algumas vivências da criatura em seu percurso evolutivo. Para alguns é a maior conquista de uma reencarnação inteira. Para outros, que já a desenvolveram com maior amplitude em outras existências, será a base para o cumprimento de exigentes missões coletivas. Podemos enumerar em quatro as principais vivências que conduzem à autonomia:

1. Auto-estima - é o aprendizado do valor pessoal. Quem se ama sabe sua real importância.

2. Resistência emocional - é a capacidade de suportar os próprios sentimentos, que muitas vezes levam-nos às crises e opressões em razão da bagagem da alma. Atravessar dores amadurece.

3. Saber o que se quer - somente fazendo escolhas, descobrimos nossas aspirações. Algumas dessas escolhas incluem a corajosa decisão de romper com velhas "muletas mentais".

4. Escutar os sentimentos - nos sentimentos está o "mapa" de nosso "Plano Divino". Aprender a ouvi-los sem os ruídos da ilusão será nossa sintonia com o "Deus Interno".

Quem adquire autonomia fica bem consigo, torna-se ótima companhia para si e passa a buscar, automaticamente, com mais intensidade, o próximo, o trabalho.

"As pessoas, quando educadas para enxergar claramente o lado sombrio de sua própria natureza, aprendem ao mesmo tempo a compreender e amar seus semelhantes." (2)

A ausência da autonomia pode levar-nos à condição de mendigos de amor ou vítimas do destino. Considerando-a como gestora da almejada condição de "sentir-se bem" perante a existência, na sua falta o ser humano debate-se em flagelos morais lamentáveis que o escravizam a condutas autodestrutivas, tais como conflitos crônicos, mágoas permanentes, baixa tolerância a frustrações, projeções psicológicas no outros, vergonha de si.

O eminente Doutor Frederick Perls, criador da terapia Gestalt nos diz: "Eu faço as minhas vontades e você faz as suas. Eu não estou neste mundo para viver de acordo com as suas expectativas, e você não está neste mundo para viver de acordo com as minhas. Eu sou eu e você é você. Se um dia nos encontrarmos, vai ser lindo! Se não, nada há de se fazer." (3)

Jesus, a título de aferir a visão alheia, indagou: Quem dizem que eu sou?

Imperioso saber quem somos, pois, do contrário, seremos quem querem que sejamos.

Em outra ocasião, o Divino Tutor de nossos destinos asseverou: "Pois que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua alma? Ou que dará o homem em recompensa da sua alma?" (4)

A colocação de Jesus é rica de clareza acerca da autonomia como sendo nossa maior defesa na rota de ascensão.

***

Amiga (o) de caminhada,

Não confundas autonomia com recursos oferecidos a ti pela Divina Providência.

Autonomia é estágio de um processo deflagrado por ti mesmo (a). Em verdade, um efeito de tua perseverança na longa e exaustiva viagem da interiorização.

Pede a Deus para dilatar teu discernimento a fim de usá-la afinada com os propósitos do bem, entretanto, felicita a ti mesmo (a) lográ-la, porque é conquista individual, inalienável e intransferível.

De nossa parte, se algo fizemos para chegares até este ponto evolutivo, foi, tão somente, lembrar-te sempre que todos merecemos ser felizes.

1. O Livro dos Espíritos - questão 827
2. The Collected Works of CG Jung (CW) - 17 vol. VII par. 28
3. Gestalt - Terapia Explicada - Frederick Perls - 1969
4. Mateus 16:26

terça-feira, 4 de abril de 2017

Santidade dos Médiuns

Escutando Sentimentos - Capítulo 12

"Aquele que, médium, compreende a gravidade do mandato de que se acha investido, religiosamente o desempenha."

O Evangelho Segundo o Espiritismo - Capítulo 28 - Item 9


As atividades no Sanatório Esperança prosseguiam intensas. Médiuns e doutrinadores, escritores e líderes da doutrina abarrotavam os leitos do pavilhão destinado aos misteres da recuperação mental. Dona Maria Modesto e Eurípedes Barsanulfo chegavam a passar dias sem um repasto momentâneo. A dor e as mais diversas expressões de insanidade procuravam-lhes rogando amor e misericórdia. O tempo era escasso para tantas necessidades. Chegando a noite, desprendidos pelo sono físico, engrossavam ainda mais as expressões de socorro e alívio. Diversos lidadores do Espiritismo suplicavam respostas e orientação. Muita vez faltava energia suficiente ao labor, entretanto, tínhamos o coração rico em plenitude ante tanto a fazer.

Acompanhando Dona Modesta às enfermarias dos pavilhões inferiores, reservadas aos tratamentos mais demorados e graves, deparamos com Laura, valorosa tarefeira da mediunidade, recém-chegada ao Sanatório.


- Laura, minha amiga, Deus seja louvado com esperança!

- Assim seja! Com quem tenho a honra de falar?

- Nada de honra, Laura. Sou servidora desta casa. Meu nome é Maria Modesto Cravo. Pode chamar-me por Dona Modesta.

- A senhora é a amiga de que Doutor Inácio havia me falado?

- Sou eu mesma.

- Então é de Uberaba?

- Fui? Não sou mais - e demos uma sonora gargalhada.

- É que às vezes me esqueço que já estou no "além". Ainda falo como se estivesse na Terra.

- Não pode ser diferente. A adaptação requer tempo. Fale-me de você, Laura.

- Ah, Dona Modesta! Não sei se estou bem! Aliás, acho mesmo que nunca estive bem! Se Deus permitir, nunca mais quero voltar como médium. É muito doloroso!

- Sei bem como é, minha filha! Também fui médium.

- É mesmo?! Então a senhora me entenderá. Só não sei se devo falar o que sinto e penso.

- É o que mais quero ouvir, amiga querida. Estou aqui para isso.


- Minhas lutas no lar foram muito árduas. Se não fui melhor médium é porque não contei com o apoio dos familiares. Eles não queriam nada com reforma, sabe como é?

- Sei.

- Meu marido... - quando se preparava para falar, foi interrompida por Dona Modesta.

- Laura, esqueça a família por um instante. Vamos falar de você.

- Falar o que de mim, quando nada sei sobre mim?!

- Então já começou a dizer algo. Continue. Coloque o que sente para fora. Vou lhe ajudar - foram ministrados passes na região do lobo frontal e na parte mediana lateral esquerda da cabeça.

- Gostaria de saber por que cheguei aqui assim depois de tudo porque passei; o que saiu errado? Algo saiu errado, não saiu Dona Modesta?

- O que sente, minha filha?

- Angústia. Muita angústia.

- Isso, fale, coloque para fora!

- Revolta.

- Com o quê?

- Não sei, Dona Modesta! Não sei! - e caiu em choro convulsivo - me ajude, por favor, a saber, o que se passa comigo. É como pela vida inteira carregasse um fardo do qual nunca me livrei. Não sei o que é ser feliz. Trabalhei, trabalhei e... E agora? Que vai ser de mim? Parece que de nada adiantou ser espírita.

- Engano seu, Laura. Adiantou muito.

- Mas veja como me encontro. O que tenho? Esclareça-me, pelo amor de Deus!

- Seu drama é o mesmo de milhares de companheiros do ideal. Cabeça congestionada de informação, coração vazio de ideal.

- A senhora deve estar divertindo comigo!

- Parece que estou, Laura? Olhe profundamente em meus olhos e veja o que sente - Dona Modesta fixou-lhe o olhar, aguçando a sensibilidade da paciente.

- Não, acho que não está de brincadeira, mas não consigo aceitar o que a senhora diz.

- Pois aceite, porque essa é a sua verdade.

- Não chega estar neste leito? Nem sei com exatidão que hospital é este, e ainda vou ter que aceitar o que a senhora me diz? Acreditei com sinceridade que o trabalho espírita me daria luz. Foi só o que fiz.

- O trabalho espírita é luz em qualquer tempo, contudo, Laura, resta saber se a luz do trabalho iluminou igualmente o trabalhador.

- Estive por mais de quarenta anos ativamente na mediunidade.

- Laura, olhe os pacientes ao seu redor - havia uma longa fileira de leitos totalmente tomados. - Veja! São todos servidores da doutrina em recuperação e reajuste depois da morte.


- Que nos faltou, Dona Modesta?

- Uma palavra detestada por muitos que não compreendem seu sentido: sacrifício.

- Mais sacrifício que fiz eu?

- Sua ficha não aponta nessa direção os seus esforços, minha filha.

- Então não sei de que sacrifício a senhora está falando.

- O sacrifício do amor além do dever. Muitos servidores bondosos, para não dizer a maioria, servem atrelados a condições. Respiram dentro dos limites a que se habituaram na comunidade doutrinária. Estipulam tempo e quantidade de conformidade com o padrão. Escudados na virtude da disciplina e acobertados com justificativas acerca do dever familiar e profissional, são incapazes de transpor barreiras imaginárias e servirem além da obrigação.

- Fui muito dedicada, Dona Modesta.

- Reconheço.

- Isso não é sacrifício?

- Não. Sacrifício é usar conscientemente todo o tempo que temos em favor do erguimento do bem em nós. Sacrificar é dar do que nos pertence, esquecendo de nós. Somente quem vibra nas faixas do sacrifício espontâneo qualifica com amor aquilo que faz, porque sabe quanto lhe é exigido em favor das realizações nobres. E você, Laura, se enquadra nessa definição?


- Creio que não!

- Por quê?

- Porque sinto que podia fazer mais. Isso me revolta, Dona Modesta, isso me revolta! Como me enganei assim meu Deus! Agora tudo é claro, tão claro! - e novamente afogou-se nas lágrimas em lamentável crise de tristeza.

- Calma, minha filha! Se acalme! O choro vai lhe fazer bem.

- Está fazendo mesmo... Pois... Eu não sei há quanto tempo não choro. Ah! Meu Deus! Eu sou um verme, porque não olhei para mim como agora!... As lutas me insensibilizaram... E... Acho que passei a vida em constante reclamação não externada... Corroendo-me por dentro... E... Parece que quero me punir continuamente por algo que não me lembro, mas sei que fiz...

- E não teve com quem falar, não é?

- É, isso mesmo! Não sei nem se falaria com alguém. Logo eu, a médium do centro. Que pensariam de mim?

- Eis o problema! Muita ideia no cérebro, muita fantasia na imaginação. Pouca luz no sentimento. Tarefa como a mediunidade, minha filha, requisita o calor da humildade no coração para derreter o gelo da auto-imagem superdimensionada na cabeça. Afora isso, é muita "loucura no pensamento" e um "carnaval de máscaras" sobre si mesmo regado pelo licor embriagante da ilusão.


- Que será de mim, Dona Modesta? Em nada me valeram os anos de serviço?

- Valeram muito, Laura. Para você ter noção sobre isso, terá que estudar com carinho a sua trajetória desde o retorno ao corpo até agora. Você concluirá que houve um enorme avanço.

- Avanço?! Sinto-me é falida. Não mereço nada. Nem sei por que estou sendo amparada. Apesar de falar por brincadeira, sempre achei mesmo que iria para regiões bem complicadas depois da morte.

- Não existe falência. Existem resultados. Em verdade, você não vai para regiões inferiores, veio de lá. Eis o avanço.

- Vim mesmo?

- Veio. Quando tiver acesso aos seus dados, verá que enorme progresso você fez nestas quatro décadas como médium.

- Mas deveria estar melhor, não é mesmo?

- Laura, raríssimos tem chegado aqui como "completistas", ou seja, aqueles que transpuseram a atração das folgas e das facilidades para servirem mais e mais. Aqueles que conscientizaram pelo coração do quanto necessitavam respirar o clima do amor aplicado. Aqueles que doaram e se doaram na leira em benefício da iluminação do mundo e de si mesmos. Aqueles, minha filha, que realizaram muito por fora, mas que não se esqueceram de aprimoram-se nos impulsos e nas tendências.


- Qual a minha posição espiritual, Dona Modesta? Seja franca!

- Sua ficha diz que destes quarenta anos de serviço virtuoso na mediunidade, os primeiros dez foram repletos de entusiasmo, idealismo e cuidados íntimos. Os outros trinta...

- O que têm os outros trinta?

- Quer mesmo ouvir?

- Claro que quero, estou farta das minhas mentiras!

- Os outros trinta, passou por eles sem deixar que eles passassem por você. Viveu-os por obrigação cármica. Não os viveu para você como alma em aprendizado e crescimento, e sim como tarefa programada em resgate de faltas pretéritas. Com essa noção, elegeu a benção da mediunidade como pesado ônus do qual queria se livrar o quanto antes. Queixava por dentro, em muda lamentação, as renúncias que era obrigada a fazer. Não as fazia por amor e sim em razão do esclarecimento que amealhou. Congestionou a cabeça e não preencheu o vazio do coração. Obteve muita informação que não gerou a transformação. Luz na cabeça sem educação do sentimento. Agiu na caridade fazendo luz para os outros e não edificou em si mesma a conquista da luz própria. No fundo, como acontece a muitos de nós, bafejados pela confortadora doutrina, agiu por interesse pessoal. Serviu esperando vantagens de amparo e isenção de problemas.


- Acreditava estar fazendo tudo por amor.

- Raros de nós ocupam essa condição, minha filha. No entanto, melhor que já estejamos agindo no bem.

- Que drama o meu! Meu Deus! Revolto-me ainda mais. Isso é a pura verdade!...

- Se continuar revoltada, estará estendendo seu sofrimento. É hora de mudar, Laura.

- Como não revoltar, Dona Modesta?!

- A revolta produz a autopunição a que você se referiu. É um mecanismo inconsciente da mente que cobra de si o que já sabe que pode fazer. Só há um caminho.

- Qual?

- Trabalhar mais, minha filha, e instaurar no coração o amor incondicional e sem limites.

- Terei instruções sobre como fazer isso?

- Se há algo que você, como muitos espíritas por aqui, não precisam mais é de instrução.

- Como vou aprender?

- Amando. Somente amando. Você será médium aqui na vida espiritual. Eurípedes autorizou-me a prepará-la para serviços socorristas futuros.

- Não acredito! Continuar médium!

- Gostaria?


- Não sei o que responder. Só sei que se aplacar meu sentimento de remorso e minha sede de ter um pouco de paz, farei o que me mandarem fazer.

- Isso não bastará, Laura. Você terá que aprender a amar o que faz, para não cair novamente nas garras da orientação religiosa sem religiosidade.

- Conseguirei?

- Claro que sim. É só querer.

- Vou confiar na senhora.

- Confie no Cristo, minha filha, e na Sua Infinita Misericórdia que nunca nos faltará.

***

Aquele que, médium, compreende a gravidade do mandato de que se acha investido, religiosamente o desempenha.

Em outro trecho assevera a codificação Kardequiana: "A mediunidade é coisa santa, que deve ser praticada santamente, religiosamente" (1).


Mediunidade é o instrumento da vida para desenvolvimento da santidade. Santidade é esculpir no coração a sensibilidade elevada. Sensibilidade é a medicação reparadora para as almas que tombaram na descrença e na apatia perante o mundo, esquecendo-se de cooperar com o Pai na Obra da Criação.

Receber esse "molde afetivo" sem absorver-lhe as lições no campo dos sentimentos é recusar mais uma vez as medidas salvadoras de Mais Alto em favor da paz interior - esse tesouro a que todos nós, Os Filhos Pródigos da Criação, estamos à procura.

Os médiuns são "alunos-problema" na escola da vida, matriculados em curso avançado e intensivo para recuperarem a aprendizagem relegada nos cursos anteriores. Sendo assim, devem guardar a noção do quanto lhes foi confiado pela Divina Providência, evitando as miragens da importância pessoal. Para seu próprio bem, devem pensar em si mesmos como alunos tardios, aceitos na universidade da mediunidade na condição excepcional do último pedido de amor, antes de serem entregues à clava impiedosa da justiça expiatória.


1. O Evangelho Segundo o Espiritismo - Capítulo 26 - Item 10