segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Receituário Oportuno

Escutando Sentimentos - Capítulo 2


"Tereis, contudo, razão, se afirmardes que a felicidade se acha destinada ao homem nesse mundo, desde que ele a procure, não nos gozos materiais, sim no bem."

O Evangelho Segundo o Espiritismo - capítulo 11 - Item 13


Desde o seu desenlace do corpo físico, Doutor Inácio Ferreira tem como tarefa matutina receber doentes em seu consultório no Hospital Esperança. Algumas vezes, devido ao agravamento dos quadros psíquicos, alguns pacientes são acolhidos em alas específicas de recuperação. Acompanhando-o a muitas dessas visitações de amor, viemos a conhecer o caso Anselmo, líder espírita experiente e valoroso por mais de quarenta e cinco anos no Triângulo Mineiro.

Ao chegar à ala, foi recebido por Manoel Roberto, o enfermeiro dedicado ao velho companheiro desde os tempos do sanatório psiquiátrico uberabense. Informado sobre o agravamento do quadro, Doutor Inácio abordou o paciente:

- Anselmo! Anselmo! Como passa meu bom amigo?

- Péssimo!

- Por quê meu filho?

- O senhor tem conhecimento do que passei durante a vida física?

- Sim. Estudo sua ficha há vários dias.

- Então deve saber que um terrível estado de desgosto íntimo acompanhou toda a minha vida. Fiquei firme na atividade espírita na esperança de ter um pouco de sossego neste plano, mas parece que não terei, não é mesmo?

- Cada qual colhe o que plantou!...

- Pois vou dizer ao senhor: só não suicidei no corpo por saber das dificuldades de tal ato. Vontade não me faltou, pois a cada dia que passava, angustiava ver minha penúria. Oração, trabalho e estudo não me curaram a tormenta. Contudo, minha alternativa foi continuar a trabalhar e esperar para depois da morte o alívio, a libertação. Agora chego aqui e o que tenho? Mais tormenta, remédios e internação.

- E como se sente diante disso?

- Eu quero matar a vida, já que não tive coragem de matar o corpo. Doutor, é possível se suicidar por aqui? É possível? Se for, pode me ensinar?!

- Sossegue, homem! Depois de quatro crises ainda pensa nisso? Faça um esforço maior!

- Esforço?! Mais do que fiz na Terra? Para quê? Meus problemas começaram ao reencarnar e continuam depois do meu retorno. Para mim chega de lutas!

- Todos temos problemas, meu filho!

- Vá me dizer que o senhor, como médico nessa casa de luz, tem algum problema! Quem está deitado e queixando sou eu, e não o senhor!

- Tenho mais problemas do que você possa imaginar! Em verdade, Anselmo, nossos problemas iniciaram quando "apartamos" de Deus. Isso se deu há milênios sem conta...

- Eu sou deportado de outro mundo, não sou?

- Deixemos esse assunto para outra hora - esquivou-se o servidor.

- Nunca tive prazer de viver na vida física. Não sei nem se sei bem o que é isso. Não devo ser mesmo deste mundo. Contudo, se aspiro ser feliz, devo ter experimentado isso algum dia. O senhor concorda comigo?

- Certamente!

- Achei que morrendo, depois de tanta dor, fruiria o bem-estar, a paz. Entretanto, creio que devo ter esquecido algo durante a vida corporal... Estranho, Doutor Inácio! Já morri e continuo com vontade de morrer. O que é isto meu Deus?! Quando vai terminar este inferno na mente? Qual a minha doença?

- Depressão!

- Depressão?! E como curar isto?

- Aprendendo a viver.

- Eu não tenho depressão. Pessoas com depressão não lutam como eu lutei.

- Posso lhe aplicar um teste, se você desejar.

- Aplique.

- Responda com sinceridade: você sentia desânimo, inconformação e angústia com frequência na vida física?

- Sim. Muito.

- Isso é depressão.

- Mas nunca nenhum médico jamais diagnosticou! No máximo falavam em cansaço.

- Depressão é cansaço de viver, meu filho.

- E como não sentir isso com a vida que tive?

- A pergunta está mal formulada, Anselmo. Melhor seria dizer assim: "E como não sentir isso deixando de aceitar a vida que tive!" Depressão é não aceitar a vida como ela é.

- Mas fui resignado.

- O que você entende por resignação?

- Suportar as provas da vida com paciência.

- Não é isso!

- Não?! Então o que é Doutor Inácio?

- Você esqueceu uma parte essencial em seu conceito. É suportar as provas da vida com paciência e jamais desistir de buscar-lhes a solução.

- Eu fiz isso! - alegou o paciente.

- Não fez! - retrucou o psiquiatra com sua típica franqueza e ironia.

- Fiz!

- Não fez! Tenho sua ficha e quem o encaminhou para cá me deu detalhes de sua existência. Digamos que você fez isso até por volta dos quarenta anos de idade, em seus primeiros quinze anos de Espiritismo, depois só se queixou. Você desistiu sem assumir que desistiu. Não faliu, porém, deixou de crescer tanto quanto podia. Você cansou por dentro, e não admitiu. Os outros trinta anos passaram na revolta e com esperança de morrer logo para fruir. Continuou sua tarefa por fora, esquivando-se do dever da melhora por dentro. Instalou-se o vazio e a vida passou. Você foi traído pela famosa frase de muitos cristãos distraídos que esbanjam tempo e oportunidades.

- Que frase, Doutor?

- As famosas frases proferidas por todos aqueles que se deixaram abater pelo egoísmo e se cansaram das refregas doutrinárias: "Agora vou cuidar de mim, dar um tempo para mim mesmo! Chega dos espíritas!"

Nesse ínterim, Anselmo modificou sua fisionomia por completo e começou a esbravejar:

- Já ouvi falar na "segunda morte" (1). Ela existe mesmo Doutor? Se existir, prefiro-a a ter que viver. Quero voltar aos reinos inferiores! As coisas não foram como desejei na Terra e, pelo visto, não serão a contento por aqui também.

- A vida o espera rica de oportunidades. Só você não consegue perceber!

- Nada deu certo na minha vida! Não quero tentar mais!

- Engano, meu filho! Talvez, nada tenha saído como você desejou. Isso não significa que não deu certo. Em verdade, deu certo e você não entendeu.

- Se tivesse dado certo, eu não estaria nestas condições.

- Você está nestas condições porque não aceitou; é bem diferente!

- Não aceito mais nada da vida. Chega! Inclusive não quero o senhor como meu médico!

- Isso é fácil de resolver. De fato, não sou dos melhores! - Existe sempre uma resposta honesta nos lábios do Doutor Inácio.

- Eu não quero viver, Doutor Inácio! O senhor entende? - falou aos prantos. Para mim, chega de existir; eu não quero ser nada. Aliás - disse com ódio nos olhos - eu quero ser um verme rastejante que não precisa pensar e se cuidar! Ajude-me, Doutor Inácio! Mate-me, pelo amor de Deus!

Um choro convulsivo tomou conta de Anselmo. Na medida em que aumentava o extravasamento da dor, ele se contorcia pelo leito. Doutor Inácio, percebendo a gravidade, fez um sinal com a cabeça e alguns enfermeiros atentos e delicados lhe sedaram com elevada dose de soníferos. Algumas técnicas de dispersão e aspersão de fluidos foram ministradas quando o paciente adormeceu. Parecia agora uma criança em profundo descanso.

- Vamos retirá-lo desta ala, Doutor? - Indagou Manoel Roberto.

- Vamos levá-lo para as incubadoras.

- Para as incubadoras? Mas...

- Eu já sei o que vai dizer, Manoel! O caso, porém, exige atenção.

- Pensava que as incubadoras fossem apenas para os que se encontram na "segunda morte".

- A priori sim. Casos como o de nosso amigo com crises tão sucessivas podem atingir esse patamar instantaneamente, se não conseguir redirecionar seu pensamento. Esta é sua quinta crise.

- Se ele estivesse nas mãos de alguma "organização do mal"!

- Se estivesse lá, já não seria gente. Com este estado mental, já o teriam transformado no que desejassem, inclusive em "mentor de centro espírita" considerando a vasta experiência doutrinária que tem.

- Vamos transportá-lo aos saguões restritos - solicitou Manoel Roberto a alguns padioleiros.

- Amanhã retornarei ao caso, Manoel. Estudaremos com a junta médica o seu histórico e levantaremos uma anamnese profunda.

No dia seguinte, reuniram-se em pequena sala nos pavilhões inferiores do nosocômio o Doutor Inácio, Dona Modesta, Manoel Roberto, dois psiquiatras da alma e alguns experientes tarefeiros dos abismos. A reunião para estudar o caso Anselmo iniciou-se com a oração dirigida a Jesus. Dona Modesta, na condição de médium, percebeu irradiações da mente de elevada entidade protetora dos vales da sombra e da dor. Tratava-se de Isabel de Portugal, a Rainha e Santa Mãe dos pobres. Uma pequena mensagem fluiu pela psicofonia da médium, que não tinha conhecimento detalhado do caso em estudo:

- "Anselmo é uma esperança dos céus. Sua alma ergueu-se dos lamaçais da penúria e do mal, atingindo as margens seguras do desejo de ser melhor. Saindo das cavernas do exclusivismo e da solidão, formou família e projetou-se ao educandário da convivência. Premido pelas decepções e desgostos, ainda frágil e inseguro, resvalou novamente para o ócio, criando uma redoma no coração temeroso e assustado. Lutou quanto pôde pela conduta reta, considerando a fragilidade de suas forças. O Espiritismo fez luz em sua mente, prevenindo-o de quedas bruscas. Seu coração, no entanto, encontra-se encharcado pela tristeza face os desatinos de outros tempos, pelos quais ainda não realizou o suficiente. Conceda-lhe, em nome de Jesus Cristo, o repouso temporário. Internem-no por alguns meses na "incubadora da inconsciência" sob meu aval. Paz em Cristo, Isabel.

- Agradecemos a ti, oh Rainha do Amor! Os teus alvitres amoráveis nos calam fundo na alma - expressou Doutor Inácio com gratidão.

A reunião prosseguiu sob a inspiração da mensagem alentadora. Dona Modesta expressou-se:

- Meu Deus! Como têm aumentado os casos de espíritas neste quadro!

- Não poderia ser diferente - asseverou Doutor Inácio.

- Como classificar semelhante estado da alma? Será mesmo depressão? - indagou Manoel Roberto.

- Sim. Em conceito mais vasto, evidentemente. Não falo da depressão à qual os homens se referem nos respeitáveis códigos de doenças da medicina.

- Faça uma síntese do quadro, Inácio - solicitou Dona Modesta.

- Ao renascer, o Espírito imprime no corpo os reflexos de sua vida emotiva determinando os caracteres biológicos que melhor atendam a suas necessidades de aperfeiçoamento. Muitas criaturas, neste tempo de transição planetária, passaram longo período em "incubação psíquica" no vales sombrios nos quais adquiriram os traços do derrotismo e da "não vida". Sob o jugo de mentes perversas, esses irmãos foram conduzidos aos charcos da "morte interior". São hipnotizados pela ideia de não merecerem existir após quedas lamentáveis exploradas por essas hordas do mal. Assim, regressam ao corpo sem desejo de viver. Uma "depressão induzida". Uma terrível atração para a paralisia, a culpa e a insatisfação. Desapontados e contrariados em anseios pessoais, só lhes resta desistir e parar. Essa é a ordem mental doentia que colheram em tais regiões.

- E quando encarnados? - atalhou Manoel Roberto.

- Quando encarnados, sentem-se desajustados com o ato de viver e lutar pela sobrevivência. "Negam" psicologicamente a vida física, a ordem social e o próprio corpo. Quando conseguem algo que os motive, logo perdem o encanto. São desajustados com a vida.

- Quando são espíritas, a situação parece ser bem pior! - asseverou Dona Modesta.

- É verdade, Modesta! Como são almas que se sentem inferiores, quando aderem ao Espiritismo e começam uma caminhada valorosa, saltam para o outro extremo, isto é, sentem-se os mais valorosos do planeta. Passam a se julgar muito capazes e com muitas respostas. Fato que não deixa de ter sua parcela de verdade. Todavia, valorizam-se em excesso e criam o jogo das aparências, os estereótipos com os quais tentam crer-se mais fortes que realmente sentem-se. É a tática do orgulho que procura abafar a inferioridade e carcome o mundo íntimo. Para se protegerem de seus complexos de fragilidade, desenvolvem crenças de grandeza com as quais se sugestionam ante a vida para dar conta do próprio ato de existir.

- Não compreendi! - externou com humildade o enfermeiro.

- Muitos deles não têm coragem de admitir, mas detestam viver e ser quem são. Por isso adoram as cantilenas de grandeza e as melodias da ilusão. Se não conhecessem a doutrina, possivelmente, muitos deles, exterminariam a vida. É lamentável! Conhecem abundantemente sobre o mundo dos Espíritos e sabem uma miséria sobre si próprios...

- Inácio, terá sido essa a razão pela qual Isabel ressaltou o progresso de Anselmo?

- Sim, Modesta! Pelo menos no caso de Anselmo, encontramos crescimento.

- Nos demais... - insinuou Dona Modesta.

- Anselmo chegou aqui adoecido. A maioria nem chega... - concluiu o médico.

- Por essa razão, não podemos estipular índices de comportamento para ninguém. Sem conhecer sua história evolutiva, acabamos nos julgamentos estéreis e antifraternos - acrescentou Dona Modesta.

Alguns dos trabalhadores presentes externaram suas participações com sabedoria. Um psiquiatra da alma, cooperador nas responsabilidades do Doutor Inácio no Hospital, habituado ao episódio, destacou:

- Imperioso levar aos amigos espíritas no mundo um receituário oportuno. Nossos irmãos precisam ingerir com freqüência três medicações indispensáveis.

- Quais? - mostrou-se curioso Manoel Roberto.

- A primeira é acreditar que merecem a felicidade, assim como todos os seres humanos. E a segunda é parar de encontrar motivos externos para suas dores, descobrindo-lhes as causas íntimas.

- E a terceira?! - indagou curioso um dos presentes ao debate.

Pedindo licença, foi o próprio Doutor Inácio quem respondeu:

- A terceira é parar de pensar em felicidade para depois da morte e tentar viver a vida do modo o mais feliz possível. Há muito espírita que faz da atividade doutrinária um "depósito bancário" com intuito de "sacar tudo depois da morte". Em casos como o de Anselmo, chegam aqui e encontram suas "contas correntes" zeradas. Sendo assim é justo que perguntem sobre a razão, mas não é justo que se queixem de ninguém, a não ser de si mesmos. O Livro dos Espíritos na questão 920 fala sobre o assunto afirmando: "Dele, porém, depende a suavização de seus males e o ser tão feliz quanto possível na Terra." - e arrematou o médico uberabense: - tudo depende do bem que semearmos e da atenção que damos às nossas reais intenções de crescimento.

1. Nota do médium: Vide o capítulo "Ovoidização" na obra mediúnica "Ícaro Redimido" - Espírito Adamastor - editora INEDE.

Nenhum comentário:

Postar um comentário