domingo, 26 de junho de 2016

A Velha Ilusão das Aparências

Reforma Íntima Sem Martírio - Capítulo 22


"Não basta que dos lábios manem leite e mel. Se o coração de modo algum lhes está associado, só há hipocrisia. Aquele cuja afabilidade e doçura não são fingidos nunca se desmente: é o mesmo, tanto em sociedade, como na intimidade. Esse, ao demais, sabe que se, pelas aparências, se consegue enganar os homens, a Deus ninguém engana."

O Evangelho Segundo o Espiritismo – Capítulo 9 - Item 6

Os adeptos sinceros do Espiritismo, mais que nunca, carecem de abordar com franqueza o velho problema da hipocrisia humana. Nesse particular, seria muito proveitoso que as agremiações doutrinárias promovessem debates grupais acerca dos caminhos e desafios que enfrentamos todos nós, os que decidimos por uma melhoria moral no reino do coração.

O chamado vício de santificação continua escravizando o mundo psicológico do homem a noções primárias e inconsistentes sobre como desenvolver o sagrado patrimônio das virtudes que se encontra adormecido na vida superconsciente do ser.

Hipocrisia é o hábito humano de aparentar ser o que não é em razão da necessidade de aprovação do grupo social com o qual convivemos. Intencional ou não, é um fenômeno profundo nas raízes emocionais e psíquicas, que envolve particularidades específicas de cada criatura, mas que pode ser conceituado como a atitude de simular, antes de tudo para si mesmo, uma imagem ideal daquilo que gostaríamos de ser. Difícil definir os limites entre o desejo sincero de aperfeiçoar-­se em direção a esse eu ideal e o comportamento artificial que nos leva a acreditar no fato de estarmos nos transformando, considerando a esteira de reflexos que criamos nas fileiras da mentira.

Aliás, para muitos corações sinceros, que efetivamente desejam o aprimoramento e mudança, detectar uma atitude falsa e uma ação que corresponda aos novos ideais costuma desenvolver um estado psicológico de insatisfação consigo mesmo, que pode ativar a culpa e a cobrança impiedosa. Instala-­se, assim, um cruel sistema mental de inaceitação de si mesmo que ruma para a mais habitual das camuflagens da hipocrisia: a negação, a fuga.

Não podemos asseverar que todo processo de defesa psíquica que vise negar a autêntica realidade humana seja algo patológico e nocivo. Muitas almas não teriam a mínima saúde mental não fossem semelhantes recursos que, em muitas ocasiões, funcionam como um escudo protetor que vai levando a criatura, pouco a pouco, ao conhecimento doloroso da verdadeira intimidade, até ter melhores e mais seguros recursos de libertação e equilíbrio. No entanto, quando nesse processo existe a participação intencional de ações que visem impressionar os outros com qualidades ainda não conquistadas, principalmente para auferir vantagens pessoais, então se estabelece a hipocrisia, uma ação deliberada de demonstrar atitudes que não correspondem à natureza dos sentimentos que constituem a rotina de sua vida afetiva.

As vivências sociais humanas, com suas exigências materialistas, conduziram o homem à aprendizagem da hipocrisia. A substituição de sentimentos foi um fenômeno adquirido. O hábito de camuflar o que se sente tornou-­se uma necessidade perante os grupos, e certas concepções foram desenvolvidas nesse contexto que estimulam a falsidade. Convencionou-­se, por exemplo, que homens não devem chorar, criando a imagem da insensibilidade masculina, em torno da qual bilhões de almas trafegam em papéis hipócritas e doentios. Certas profissões, como a de educador, durante séculos aprisionadas nas sombras do mito, levaram à criação de um abismo entre educador e educando, quando eram ambos obrigados a disfarçar emoções para respeitarem seus limites, impostos pela perversa institucionalização dos super-­heróis da cultura. Naturalmente, todos esses convencionalismos vêm sofrendo drásticas reformulações para o progresso das comunidades em direção a um período mais feliz e pleno de autenticidade nas atividades humanas.

Acompanhando essas renovações de mentalidade na cultura, é imperioso que os líderes e condutores espíritas tenham a coragem de sair de seus papéis, perante a coletividade doutrinária, e erguer a bandeira do diálogo franco e construtivo acerca das reais necessidades que todos carregamos, rompendo com um ciclo de faz de conta. Ciclo esse que somos, infelizmente, obrigados a afirmar, tem feito parte da vida de muitos adeptos do Espiritismo e até mesmo de grupos inteiros. Sem qualquer reprimenda, vejamos esse quadro como sendo inevitável em se tratando de almas como nós, mal saídas do primarismo evolutivo. Nada mais fizemos que caminhar apara a nossa hominização, ou seja, largar a selvageria instintiva e galgar os degraus da humanização – o núcleo central do aprendizado na fase hominal, a qual estamos apenas penetrando.

Adquirir essa consciência de que a evolução não se faz aos saltos, e sim etapa a etapa, é um valoroso passo na libertação desse vício de santificação, essa necessidade neurótica que incutimos ao longo de eras sem fim, especialmente nas leiras religiosas, com o qual queremos passar por aquilo que ainda não somos. Disso resulta o conflito, a dor, a cobrança, o perfeccionismo e todo um complexo de atitude de autodesamor.

Sejamos nós mesmos e não nos sintamos menores por isso. Aparentar santificação para o mundo não nos exonera da equânime realidade dos princípios universais. Ninguém escapa das leis criadas pelo Criador. A elas todos estamos submetidos. Que nos adiantará demonstrar santificação para os outros, se a vida dos espíritos é um espelho da Verdade que mostrará a cada um de nós, particularmente, como somos?

Se acreditamos, portanto, na imortalidade e sabemos da existência dessas leis-­espelho, deveríamos então concluir que quanto antes, para os que se encontram encarnados, tratarmos nossa realidade sem medos e culpas, maior será o bem que faremos a nós mesmos.

Recordemos, nesse ínterim, que a caridade para com o próximo, conquanto seja extenso tributo de ajuste aos Estatutos Divinos, não é passaporte de garantia para a movimentação nas experiências da autoridade e do equilíbrio nos planos imortais. Aprendamos, o quanto antes, a cultivar essa sensação de salvação, experimentada nos serviços de doação, também em nossos momentos de autoencontro. Essa conquista realmente nos pertence e ninguém pode tirá-la de nós em tempo algum.

Viver distante da hipocrisia não significa, necessariamente, expor a vida íntima e as lutas que carregamos a qualquer pessoa, mas expô-­las, antes de tudo, a nós mesmos, assumindo o que sentimos, os desejos que nutrimos, os sonhos que ainda trazemos, os sentimentos que nos incendeiam de paixões, os pensamentos que nos consomem as horas, esforçando-nos por analisar nossas más condutas. Por outro ângulo, esse mesmo processo de detecção consciente precisa ser realizado com nossos valores, as decisões infelizes que deixamos de tomar, o sacrifício de construir uma atividade espiritual, os novos costumes que estamos talhando na personalidade, os sentimentos sublimes que começam a ensaiar projetos de luz na nossa mente, as escolhas que temos feito no bem comum.

Reforma íntima, como a própria expressão comunica, quer dizer a mudança que fazemos por dentro. E jamais, em caso algum, ela se dará repentinamente, num salto. A santificação é um processo lento e gradativo. Cuidemos com atenção das velhas ilusões que nos fazem acreditar na angelitude por osmose, ou seja, de que a simples presença ou participação nos ofícios doutrinários é garantia de aperfeiçoamento.

Temos recebido, na vida espiritual, inúmeros companheiros de ideal cuja revolta consigo mesmos os leva a tormentos patológicos de graves proporções, quando percebem o equívoco de acreditar que tão somente sua adesão às atividades de amor lhes renderia o reino dos céus. A ilusão é tão intensa que requer tratamentos especializados e longos em nosso plano. E vejam, meus amigos encarnados, o que a mente é capaz, pois muitos desses corações poderiam se beneficiar intensamente das realizações a que se entregaram, podendo mesmo alguns obter um desencarne tranquilo. Todavia, sem exceção, estão esperando mais do que merecem; é quando surge a inconformação diante das expectativas de honrarias e glórias injustificáveis na espiritualidade. Esbravejam, então, ao perceberem que são tratados com muito carinho e amor, a fim de assumirem sua verdade realidade de doentes com baixo aproveitamento na reencarnação, colhendo espinhoso resultado de seu autoengano.

Espíritas amigos e irmãos, lembrai-vos de que todos estamos na Terra, planeta de testes infindáveis ao nosso aperfeiçoamento. Mesmo os que se encontram fora do corpo ajustam-se a essa conotação evolutiva. E nessa conjuntura, o caminho da santificação se amolda à realidade do homem que nela habita. Se, por agora, estivermos pelo menos nos esforçando para sair do mal que fazemos a nós e ao próximo, dirigimo-­nos para essa proposta sagrada. Todavia, se ansiamos por concretizar em mais larga escala as luzes de nossa santificação, lancemo-­nos com louvor a outra etapa do processo e aprendamos como criar todo o bem que pudermos em torno de nossos passos, soltando-­nos definitivamente de todos os grilhões do terrível sentimento do fingimento, o qual ainda nos faz sentir que somos aquilo que supomos ser.

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