domingo, 26 de junho de 2016

A Velha Ilusão das Aparências

Reforma Íntima Sem Martírio - Capítulo 22


"Não basta que dos lábios manem leite e mel. Se o coração de modo algum lhes está associado, só há hipocrisia. Aquele cuja afabilidade e doçura não são fingidos nunca se desmente: é o mesmo, tanto em sociedade, como na intimidade. Esse, ao demais, sabe que se, pelas aparências, se consegue enganar os homens, a Deus ninguém engana."

O Evangelho Segundo o Espiritismo – Capítulo 9 - Item 6

Os adeptos sinceros do Espiritismo, mais que nunca, carecem de abordar com franqueza o velho problema da hipocrisia humana. Nesse particular, seria muito proveitoso que as agremiações doutrinárias promovessem debates grupais acerca dos caminhos e desafios que enfrentamos todos nós, os que decidimos por uma melhoria moral no reino do coração.

O chamado vício de santificação continua escravizando o mundo psicológico do homem a noções primárias e inconsistentes sobre como desenvolver o sagrado patrimônio das virtudes que se encontra adormecido na vida superconsciente do ser.

Hipocrisia é o hábito humano de aparentar ser o que não é em razão da necessidade de aprovação do grupo social com o qual convivemos. Intencional ou não, é um fenômeno profundo nas raízes emocionais e psíquicas, que envolve particularidades específicas de cada criatura, mas que pode ser conceituado como a atitude de simular, antes de tudo para si mesmo, uma imagem ideal daquilo que gostaríamos de ser. Difícil definir os limites entre o desejo sincero de aperfeiçoar-­se em direção a esse eu ideal e o comportamento artificial que nos leva a acreditar no fato de estarmos nos transformando, considerando a esteira de reflexos que criamos nas fileiras da mentira.

Aliás, para muitos corações sinceros, que efetivamente desejam o aprimoramento e mudança, detectar uma atitude falsa e uma ação que corresponda aos novos ideais costuma desenvolver um estado psicológico de insatisfação consigo mesmo, que pode ativar a culpa e a cobrança impiedosa. Instala-­se, assim, um cruel sistema mental de inaceitação de si mesmo que ruma para a mais habitual das camuflagens da hipocrisia: a negação, a fuga.

Não podemos asseverar que todo processo de defesa psíquica que vise negar a autêntica realidade humana seja algo patológico e nocivo. Muitas almas não teriam a mínima saúde mental não fossem semelhantes recursos que, em muitas ocasiões, funcionam como um escudo protetor que vai levando a criatura, pouco a pouco, ao conhecimento doloroso da verdadeira intimidade, até ter melhores e mais seguros recursos de libertação e equilíbrio. No entanto, quando nesse processo existe a participação intencional de ações que visem impressionar os outros com qualidades ainda não conquistadas, principalmente para auferir vantagens pessoais, então se estabelece a hipocrisia, uma ação deliberada de demonstrar atitudes que não correspondem à natureza dos sentimentos que constituem a rotina de sua vida afetiva.

As vivências sociais humanas, com suas exigências materialistas, conduziram o homem à aprendizagem da hipocrisia. A substituição de sentimentos foi um fenômeno adquirido. O hábito de camuflar o que se sente tornou-­se uma necessidade perante os grupos, e certas concepções foram desenvolvidas nesse contexto que estimulam a falsidade. Convencionou-­se, por exemplo, que homens não devem chorar, criando a imagem da insensibilidade masculina, em torno da qual bilhões de almas trafegam em papéis hipócritas e doentios. Certas profissões, como a de educador, durante séculos aprisionadas nas sombras do mito, levaram à criação de um abismo entre educador e educando, quando eram ambos obrigados a disfarçar emoções para respeitarem seus limites, impostos pela perversa institucionalização dos super-­heróis da cultura. Naturalmente, todos esses convencionalismos vêm sofrendo drásticas reformulações para o progresso das comunidades em direção a um período mais feliz e pleno de autenticidade nas atividades humanas.

Acompanhando essas renovações de mentalidade na cultura, é imperioso que os líderes e condutores espíritas tenham a coragem de sair de seus papéis, perante a coletividade doutrinária, e erguer a bandeira do diálogo franco e construtivo acerca das reais necessidades que todos carregamos, rompendo com um ciclo de faz de conta. Ciclo esse que somos, infelizmente, obrigados a afirmar, tem feito parte da vida de muitos adeptos do Espiritismo e até mesmo de grupos inteiros. Sem qualquer reprimenda, vejamos esse quadro como sendo inevitável em se tratando de almas como nós, mal saídas do primarismo evolutivo. Nada mais fizemos que caminhar apara a nossa hominização, ou seja, largar a selvageria instintiva e galgar os degraus da humanização – o núcleo central do aprendizado na fase hominal, a qual estamos apenas penetrando.

Adquirir essa consciência de que a evolução não se faz aos saltos, e sim etapa a etapa, é um valoroso passo na libertação desse vício de santificação, essa necessidade neurótica que incutimos ao longo de eras sem fim, especialmente nas leiras religiosas, com o qual queremos passar por aquilo que ainda não somos. Disso resulta o conflito, a dor, a cobrança, o perfeccionismo e todo um complexo de atitude de autodesamor.

Sejamos nós mesmos e não nos sintamos menores por isso. Aparentar santificação para o mundo não nos exonera da equânime realidade dos princípios universais. Ninguém escapa das leis criadas pelo Criador. A elas todos estamos submetidos. Que nos adiantará demonstrar santificação para os outros, se a vida dos espíritos é um espelho da Verdade que mostrará a cada um de nós, particularmente, como somos?

Se acreditamos, portanto, na imortalidade e sabemos da existência dessas leis-­espelho, deveríamos então concluir que quanto antes, para os que se encontram encarnados, tratarmos nossa realidade sem medos e culpas, maior será o bem que faremos a nós mesmos.

Recordemos, nesse ínterim, que a caridade para com o próximo, conquanto seja extenso tributo de ajuste aos Estatutos Divinos, não é passaporte de garantia para a movimentação nas experiências da autoridade e do equilíbrio nos planos imortais. Aprendamos, o quanto antes, a cultivar essa sensação de salvação, experimentada nos serviços de doação, também em nossos momentos de autoencontro. Essa conquista realmente nos pertence e ninguém pode tirá-la de nós em tempo algum.

Viver distante da hipocrisia não significa, necessariamente, expor a vida íntima e as lutas que carregamos a qualquer pessoa, mas expô-­las, antes de tudo, a nós mesmos, assumindo o que sentimos, os desejos que nutrimos, os sonhos que ainda trazemos, os sentimentos que nos incendeiam de paixões, os pensamentos que nos consomem as horas, esforçando-nos por analisar nossas más condutas. Por outro ângulo, esse mesmo processo de detecção consciente precisa ser realizado com nossos valores, as decisões infelizes que deixamos de tomar, o sacrifício de construir uma atividade espiritual, os novos costumes que estamos talhando na personalidade, os sentimentos sublimes que começam a ensaiar projetos de luz na nossa mente, as escolhas que temos feito no bem comum.

Reforma íntima, como a própria expressão comunica, quer dizer a mudança que fazemos por dentro. E jamais, em caso algum, ela se dará repentinamente, num salto. A santificação é um processo lento e gradativo. Cuidemos com atenção das velhas ilusões que nos fazem acreditar na angelitude por osmose, ou seja, de que a simples presença ou participação nos ofícios doutrinários é garantia de aperfeiçoamento.

Temos recebido, na vida espiritual, inúmeros companheiros de ideal cuja revolta consigo mesmos os leva a tormentos patológicos de graves proporções, quando percebem o equívoco de acreditar que tão somente sua adesão às atividades de amor lhes renderia o reino dos céus. A ilusão é tão intensa que requer tratamentos especializados e longos em nosso plano. E vejam, meus amigos encarnados, o que a mente é capaz, pois muitos desses corações poderiam se beneficiar intensamente das realizações a que se entregaram, podendo mesmo alguns obter um desencarne tranquilo. Todavia, sem exceção, estão esperando mais do que merecem; é quando surge a inconformação diante das expectativas de honrarias e glórias injustificáveis na espiritualidade. Esbravejam, então, ao perceberem que são tratados com muito carinho e amor, a fim de assumirem sua verdade realidade de doentes com baixo aproveitamento na reencarnação, colhendo espinhoso resultado de seu autoengano.

Espíritas amigos e irmãos, lembrai-vos de que todos estamos na Terra, planeta de testes infindáveis ao nosso aperfeiçoamento. Mesmo os que se encontram fora do corpo ajustam-se a essa conotação evolutiva. E nessa conjuntura, o caminho da santificação se amolda à realidade do homem que nela habita. Se, por agora, estivermos pelo menos nos esforçando para sair do mal que fazemos a nós e ao próximo, dirigimo-­nos para essa proposta sagrada. Todavia, se ansiamos por concretizar em mais larga escala as luzes de nossa santificação, lancemo-­nos com louvor a outra etapa do processo e aprendamos como criar todo o bem que pudermos em torno de nossos passos, soltando-­nos definitivamente de todos os grilhões do terrível sentimento do fingimento, o qual ainda nos faz sentir que somos aquilo que supomos ser.

sábado, 18 de junho de 2016

Depressões Reeducativas

Reforma Íntima Sem Martírio - Capítulo 21


"Sabeis por que, às vezes, uma vaga tristeza se apodera dos vossos corações e vos leva a considerar amarga a vida?"

O Evangelho Segundo o Espiritismo – Capítulo 5 - Item 25

Dores existenciais, quem não as experimenta?

A pergunta do espírito François de Genève foi elaborada num tempo em que os avanços das ciências psíquicas não tinham alcançado as profícuas conquistas da atualidade. Com o título A Melancolia e utilizando o saber espírita, esse colaborador da Equipe Verdade deu a primeira palavra sobre a grave questão dos transtornos de humor e sua relação com a vida espiritual.

À luz da ciência, depressão primária é o quadro cuja doença não depende de fatores causais para surgir, sendo, em si mesma, causa e efeito. Depressão secundária é aquele que decorre de um fator causal que pode ser, por exemplo, uma doença grave que resulta em levar o paciente a ficar deprimido.

Boa parcela dos episódios de depressão primária crônica, aqueles que se prolongam e agravam no tempo, mas que permanecem nos limites da neurose, ou seja, que não alcançam o nível de perda da realidade, são casos que merecem uma análise sob o enfoque espiritual graças à sua íntima vinculação com o crescimento interior.

À luz da imortalidade, as referidas depressões são como uma tristeza do espírito que amplia a consciência de si mesmo. Um processo que se inicia, na maioria dos casos, antes do retorno à vida corporal, quando a alma, em estado de maior liberdade dos sentidos, percebe com clareza a natureza de suas imperfeições, suas faltas e suas necessidades, que configuram um marcante sentimento de falência e desvio das Leis Naturais. A partir dessa visão ampliada, são estabelecidos registros profundos de inferioridade e desvalor pessoal em razão da insipiência na arte do perdão, especialmente do autoperdão. Nessa hora, quando a criatura dispõe de créditos mínimos para suportar esse espelho da consciência, seu processo corretivo inicia-se na própria vida extrafísica, em tratamentos muitos similares aos dos hospitais terrestres, até que haja um apaziguamento mental que lhe permita o retorno ao corpo. O mesmo não ocorre com quantos experimentam a dura realidade de se verem como são após a morte, mas que tombam nas garras impiedosas das trevas a que fizeram jus, regressando à vida corporal em condições expiatórias sob domínio de severas psicoses para colher os frutos das sementes que lançou.

Nessa ótica, depressão é um doloroso estado de desilusão que acomete o ser em busca da sua recuperação perante a própria consciência na vida física.

Essa análise amplia o conceito de reforma íntima por nos levar a concluir que soa para alma o instante divino para a reparação, conclamando-­a, após esbanjar a Herança do Pai, assim como o Filho Pródigo da parábola evangélica, ao recomeço progressivo no Colo Paternal, onde encontrará descanso e segurança – valores perdidos há milênios nos terrenos de sua vida afetiva.

Semelhantes depressões, portanto, são o resultado mais torturante da longa trajetória no egoísmo, porque o núcleo desse transtorno chama-­se desapontamento ou contrariedade, isto é, a incapacidade de viver e conviver com a frustração de não poder ser como se quer e ter de aceitar a vida como ela é, e não como se gostaria que fosse. Considerando o egoísmo como o hábito de ter nossos caprichos pessoais atendidos, a contrariedade é o preço que pagamos pelo esbanjamento do interesse individualista em milênios afora, mas, igualmente, é o sentimento que nos fará refletir na necessidade de mudança em busca de uma postura ajustada com as Leis Naturais da vida.

Para a maioria de nós, contrariedade significa que algo ou algum acontecimento não saiu como esperávamos, por isso algumas criaturas costumam dizer: "Nada na minha vida deu certo!". É tudo uma questão de interpretação. Quase sempre essa expressão "não deu certo" quer dizer que não saiu conforme nosso egoísmo. O desapontamento, portanto, é altamente educativo quando a alma, a optar pela tristeza e revolta, prefere enxergar um futuro diverso daquele que planejou, e no qual a grande meta da felicidade pode e deve estar incluída.

O renascimento corporal é programado para que a criatura encontre nas ocorrências da existência os ingredientes precisos à sua transformação. Brota, então, espontaneamente, o desajuste em forma de insatisfação crônica com a vida, funcionando como canal de expulsão de culpas armazenadas no tempo, controladas com a força de mecanismos mentais defensivos ainda desconhecidos da ciência humana e eclodindo sem possibilidade de contenção. Um expurgo psíquico em doses suportáveis...

Os sintomas, a partir de então, são muitos conhecidos da medicina humana: insônia, tristeza persistente, ideias de autoextermínio, vazio existencial e outros tantos. Poderíamos asseverar que almas comprometidas com esse quadro psicológico já renascem com um ego frágil, suscetível a uma baixa tolerância com suas falhas e estilo de vida, uma dolorosa incapacidade de se aceitar, menos ainda de se amar. No fundo, permanece o desejo impotente de querer a vida conforme seus planos, mas tudo conspira para que tenha a vida que precisa, em vista de suas necessidades de aperfeiçoamento.

A rebeldia, no entanto, que é a forma de reagir perante os convites renovadores, pode agravar ainda mais a prova íntima. Nesse caso, o homem afunda em dores emocionais acerbas que o martirizam no clímax da dor-resgate. Medo, revolta, suscetibilidade, impotência diante dos desafios são algumas das expressões afetivas que podem alcançar a condição doentia, quando sustentadas pela teimosia em não aceitar as propostas das circunstâncias que lhe contrariam os sonhos e as fantasias de realização e gozo. Forma-­se, então, um quadro de insatisfação crônica com a vida.

Como já dissemos, esse é, sem dúvida, o mais infeliz efeito do nosso egoísmo, que age contra nós mesmos ao decidirmos abandonar a suposta supremacia e grandeza que pensávamos possuir em nossas ilusões milenares de orgulho que se desfazem ao sopro renovador da Verdade.

Eis as mais conhecidas faces provacionais da vida mental e emocional do espírito que experimenta a dor das depressões primárias crônicas, cujo processo detona sua melhoria espiritual, que já vem sendo relegada ao longo dos tempos:

- Aflição antecipada com perdas – neurose de apego.

- Medo da frustração – neurose de perfeccionismo.

- Extrema resistência com a autoaceitação – neurose de vergonha.

- Desgaste energético pelo esforço para manter controle – neurose de domínio.

- Formas sutis de autopunição – neurose de culpa.

- Nítida sensação de que o esforço de melhoria é infrutífero – neurose de ansiedade.

- Acentuada suscetibilidade nos fatos corriqueiros – neurose de autopiedade.

- Surgimento imprevisto e sem razão de preocupações inúteis – neurose de martírio.

A depressão, assim analisada, é uma forma de focar o mundo que decorre de fatores intrínsecos, endógenos, desenvolvidos em milênios de egoísmo e orgulho. Chamamo-­la, em nosso plano, de silenciosa expiação reparadora.

Acostumados a impor nossos desejos e a imprimir a marca do individualismo, somos agora chamados pela dor reeducativa a novos posicionamentos, que nos custam, quase sempre, a cirurgia dos quistos de pretensão e onipotência, ao preço de silenciosa expiação no reino da vida mental. Somos contrariados pela vida para que eduquemos nossas potencialidades.

Infelizmente, com raras exceções, nossos gostos são canteiros de ilusões onde semeamos os interesses pessoais em franca indiferença às necessidades do próximo, colhendo frutos amargos que nos devolvem à realidade.

Há de se ter muita humildade para aceitar a vida como ela é, compreender suas "reclamações" endereçadas à nossa consciência e tomar uma postura reeducativa. O orgulho é o manto escuro que tecemos com o fio do egoísmo, com o qual procuramos nos proteger da inferioridade que resistimos aceitar em nós mesmos de longa data.

Bom será quando tivermos a coragem de nos mirar no espelho da honestidade e aprender a conduta excelsa do perdão, porque quem perdoa conquista sua alforria das celas da mágoa e da culpa. Conquanto a princípio o sentimento de culpa possa fazer parte da reconstrução de nossos caminhos, temos a assinalar que sua presença ainda é sinal de orgulho por expressar nossa inconformação com o que somos, ou nossa rebeldia em aceitar nossa falibilidade. Se o orgulho é um manto com o qual ingenuamente acreditamos estar protegidos dos alvitres vindos de fora concitando-­nos à autenticidade, a culpa é a lâmina cortante vindo de dentro que nos retira o controle e exige um novo proceder.

Apesar do quadro expiatório, as depressões reeducativas, quando vencidas, trazem como prêmio um extraordinário domínio de si mesmo, sem que isso signifique querer viver a vida a seu gosto, e também um largo autoconhecimento. Passada a prova, ficará o aprendizado.

Essa depressão reeducativa afiniza-­se, sobremaneira, com a visão de François de Genève, porque a maior aspiração da alma é se libertar das ilusões da vida material e gozar das companhias eleitas. Assim expressa o autor: "Se, no curso desse degredo-­provação, exonerando-vos dos vossos encargos, sobre vós desabarem os cuidados, as inquietações e tribulações, sede fortes e corajosos para os suportar. Afrontai-os resolutos. Duram pouco e vos conduzirão à companhia dos amigos por quem chorais e que, jubilosos por ver-­vos de novo entre eles, vos estenderão os braços, a fim de guiar-­vos a uma região inacessível às aflições da Terra".

terça-feira, 7 de junho de 2016

Imprudência no Trânsito

Reforma Íntima Sem Martírio - Capítulo 20


"Quantos homens caem por sua própria culpa! Quantos são vítimas de sua imprevidência, de seu orgulho e de sua ambição!"

O Evangelho Segundo o Espiritismo – Capítulo 5 - Item 4

Cumprimos nossos afazeres rotineiros no Hospital Esperança, quando fomos chamados com urgência por dona Maria Modesto Cravo no saguão para confinamento de acidentados.

Descemos o mais rápido que pudemos em direção aos pavilhões do subsolo, acompanhados por Rosângela, jovem aprendiz que se tornou infatigável companheira nos serviços de socorro.

Ao chegarmos, adentramos a unidade de tratamentos especializados e vimos Frederico, excelente cooperador das lides mediúnicas em conhecido estado brasileiro, em condições dolorosas.

Dona Modesta nos recebeu com a notícia:

— Fizemos o que foi possível, como você sabe, Ermance, mas veja o resultado...

— E qual o prognóstico, dona Modesta?

— Coma mental! Foi recolhido trinta minutos após o acidente, sem problemas com vampirismo e nem com o desligamento dos chacras.

— Ficará no monitoramento ou vai para as câmaras de recomposição?

— Por dois dias, permanecerá aqui, depois vamos reavaliar o quadro. Verifique você mesma o estado.

Aproximamo-nos. Rosângela, sempre atenta, acompanhava cada detalhe. Frederico estava com o corpo em estado de languidez, musculatura flácida e muitos ferimentos expostos na região craniana. Um leve toque na sua fronte foi o suficiente para aferir a problemática mental. Intenso barulho de vidros estilhaçados e ferro sendo retorcido, seguido de uma infeliz sensação de descontrole e impotência. O corpo perispiritual assemelhava-­se a uma massa amolecida que lembrava um corpo após o desfalecimento, mas com muito maior soma de flacidez. Não seria exagero dizer que parecia estar se desmanchando. A cor arroxeada dos pés à cabeça dava a ideia cadavérica e assombrosa. Rosângela se apiedava da situação de nosso amigo e teve um leve mal­-estar devido à cessão espontânea de energias. Saímos um pouco do ambiente, juntamente com Dona Modesta, enquanto trabalhadores especializados tornavam outras providências.

Dona Modesta, sempre atenciosa, indagou:

— Está melhor, Rosângela?

— Sim, foi uma doação imprevista. Estou tranquila.

Percebendo que Rosângela se recuperava, dirigiu-se a mim com as informações:

— Como você bem conhece a história, a despeito das inúmeras qualidades que faziam dele um homem íntegro, Frederico agia como uma criança ao volante. Sempre impudente no trânsito, acreditava em demasia na segurança do automóvel e preferiu ignorar os cuidados que deveria tomar. Negou-se a se reeducar nas lições do trânsito e colhe agora o fruto amargo de sua opção. Foi alertado muitas vezes fora do corpo, durante as noites de sono, em vão. Providenciamos amizades que o chamaram à responsabilidade, sem sucesso. Por fim, ele vai ser a lição em si mesmo, embora com o elevadíssimo preço da vida física.

Atenta a sempre educadamente curiosa, Rosângela questionou:

— Poderíamos aventar a hipótese de inimigos espirituais no caso, já que era médium?

— De forma alguma, minha jovem.

— Haveria algum componente cármico em aberto para resgate em forma de morte trágica?

— Também não, Rosângela.

— Algum descuido da parte dele, que não seja na arte de conduzir o veículo?

— Absolutamente, ele era extraordinariamente precavido quanto à manutenção do carro, com o objetivo de que usufruísse tudo o que a máquina podia oferecer. Não ingeria alcoólicos, era possuidor de reconhecida habilidade visual e motora.

— Então é um caso de imprudência?

— Pura imprudência, minha filha. Ultrapassou em muito a velocidade permitida em plena via urbana. Retorna com trinta e sete anos de antecedência, deixando família e uma reencarnação promissora com sua mediunidade e vida espírita consciente. Todo o amparo possível e desejável em nome da misericórdia foi-­lhe oferecido. O mundo físico, nesse instante, vai cogitar de carmas e obsessões, resgate e liberação, todavia, o que Frederico mais vai precisar é de tempo, autoperdão, paciência e muitas dolorosas intervenções cirúrgicas.

— Quanta dor desnecessária! — asseverou a jovem com grande lamento.

— Não existe dor desnecessária, Rosângela, existem provas dispensáveis, ou seja, tribulações que poderíamos evitar. A dor será tão grande e valorosa que levará Frederico à virtude da prudência em toda a eternidade. O que é de se lamentar é que poderia aprender isso a preço módico nos investimentos da vida. Não podemos confundir acaso e programação divina.

— Elucide meus raciocínios, dona Modesta, qual é a diferença?

A benfeitora, no entanto, como de costume, querendo esquivar-­se da postura professoral, falou:

— Querida Ermance, responda você mesmo a essa oportuna interrogação que deveria ser refletida e mencionada entre os espíritas reencarnados.

— Sim, dona Modesta, com prazer. Como sabemos, o acaso seria uma aberração nas Leis do Universo, portanto, não existe. É parte de uma concepção da ignorância em que ainda estagiamos. Dessa forma, todo acontecimento tem suas razões explicáveis. A programação reencarnatória, entretanto, é um plano com objetivos divinos em favor de quem regressa à sagrada experiência corporal na escola terrena. Semelhante projeto sofre as mais intensas e flexíveis alterações durante a jornada. Veja o caso de Frederico, que alterou em mais de três décadas o seu retorno. Nem sempre o que acontece está na programação da vida física; nem por isso existe acaso, ou seja, mesmo o imprevisto tem finalidades sublimes na ordem universal, embora pudesse ser evitado. Nada existe por acaso, quer dizer, para tudo há uma causa, uma explicação. Isso não significa que tudo tenha de acontecer como acontece. Até os fatos do mal não existem sem causalidade, nem por isso podemos concebê-­lo como uma obra do Pai, e sim reflexo oriundo de nossas decisões infelizes.

— Em sua ficha não constava o regresso na categoria de morte trágica?

— Não, ele se enquadrava na morte natural por idade, gozando de plena saúde.

— Suponhamos, então, que constasse um resgate através de tragédia, qual seria sua situação?

Dona Modesta interveio com naturalidade, esclarecendo:

— Se assim fosse, minha jovem, ainda seria um suicida, porque estaria, nesse caso, antecipando o tempo de sua liberação. Inclusive a categoria de desencarne pode sofrer modificações, conforme o proveito pessoal na reencarnação. Temos casos, aqui mesmo no Hospital, de criaturas que ressarciriam velhos crimes de guerra com desenlaces lentos, sofrendo longamente nas pontas dos bisturis e tesouras cirúrgicas e que, no entanto, levaram um leve escorregão no banheiro e acordaram na vida extrafísica felizes e saudáveis... Há também mudanças para melhor...

A conversa avançou, enquanto aguardávamos algumas providências de refazimento a Frederico. Passados alguns minutos, fomos orientados por dona Modesta:

— Chamei-­a, Ermance, a fim de que possa integrar a equipe de amparo à família de Frederico. A esposa está inconsolável. Como você sabe, ela não tem a fé espírita e está confusa.

— Sim, vou inteirar-­me das iniciativas e logo rumaremos para a residência para prestar os auxílios possíveis.

Quando regressávamos para os pavilhões superiores do Hospital, acompanhados por Rosângela, ela retornou sua sede de aprender:

— Ermance, mesmo não tendo sido intencional, a morte de Frederico será considerada um suicídio?

— Certamente. Não há ninguém que vá considerar a morte de alguém um suicídio, mas o Espírito, ao retornar a posse da vida imortal, submete-­se aos regimes naturais que vigoram no Universo. Por se tratar de uma criatura tão consciente quanto o médium Frederico, a cobrança consciencial é maior. Ele próprio se imporá severos castigos.

— Então, mesmo não havendo intenções propositadas de um criminoso, ele guarda um nível de culpabilidade pelo esclarecimento que possuía?

— Certamente. Todo esclarecimento nos torna mais responsáveis. Quando Frederico retomar a lucidez completamente, iniciará uma etapa muito dolorosa de reconstrução mental. Alguns casos similares levam a estágios prolongados, anos a fio, na para-esquizofrenia (1), um quadro muito similar à doença psiquiátrica da classificação humana agravado pelas ideoplastias. Para isso temos aquele saguão no qual ficam confinados os hebetados em transes psíquicos que a Terra ainda desconhece. Seus quadros vão muito além dos transtornos psicóticos. O fato de não ter a intenção do trespasse e de se comportar à luz do Evangelho o livrou de outros tantos tormentos voluntários que ainda poderiam agravar em muito o seu drama, em peregrinações pelas regiões inferiores na crosta terrena. Para se obter melhores noções sobre o tema, sugiro a você, minha jovem, que reflita e estude o tema Lei de Liberdade, na Parte Terceira de O Livro dos Espíritos, acrescido da oportuna questão 954, que diz:

"Será condenável uma imprudência que compromete a vida sem necessidade? Não há culpabilidade, em não havendo intenção, ou consciência perfeita da prática do mal".

                                           

Amigos espíritas,

Por trás da imprudência escondem-­se, quase sempre, os verdugos da ansiedade, da malquerença, da vaidade de aparências, da avareza e de múltiplas carências que o homem procura preencher correndo risco e desafios em nome do entretenimento e da vitoria transitória.

A postura ética do homem de bem perante as leis civis deve ser a da integridade moral.

A direção de um veículo motorizado é uma arte, e como tal deve ser conduzida: a arte de respeitar a vida.

Os códigos existem para ser cumpridos.

Habitue-­se à disciplina nesse mister e procure agir com discernimento e vigilância perante as obrigatoriedades que lhe são pedidas.

Se outros não as seguem, responderão por si mesmos, e não por você.

Você, porém, deve agir no trânsito memorizando sempre que por trás de cada volante existe uma alma em provação carregando perigosa arma nas mãos, nem sempre sob controle.

Procure ser o pacificador e renove seu proceder, por mais desacertos nas avenidas do mundo...

Dirija com o coração, e não com o cérebro, e jamais esqueça que todos nós responderemos pela utilização que fizermos dos bens que nos foram confiados.

Aprenda a respeitar as leis humanas, considerando esse um passo favorável para a sua melhoria espiritual.

Faça de sua condução uma ocasião de autoconhecimento e procure averiguar o que sustenta a atitude de insensatez em acreditar que jamais ocorrerá com você os lamentáveis episódios que já ceifaram milhões de corpos, nos testes da prudência e da responsabilidade. Habilidade pessoal adquirida com o tempo é crédito que lhe solicita mais cautela, enquanto os iludidos nela enxergam competência com permissão para o exagero.

Quanto à segurança das máquinas, analisemo-­la como medida de prevenção e segurança, não como quesito para o abuso.

Recorde que, até mesmo como pedestre, há convenções que lhe cabem para a cooperação nos espaços comunitários.

Nossa tarefa, enquanto desencarnados, é proteger e orientar sempre conforme os limites das convenções, ultrapassando-­as somente quando o amor não se torna conivência.

Nesse sentido, estejam certos os amigos encarnados que, de nossa parte, respeitamos o que estipula a lei terrena; assim, apuramos sempre se o ponteiro não ultrapassa em muito a velocidade permitida como uma medida aferidora de equilíbrio para a harmonia geral, critério seletivo para dispensar amparo e auxílio em casos de reincidência...

1. Nota da editora: esta expressão é usada no plano espiritual para indicar outras variantes na classificação das doenças psiquiátricas.