domingo, 28 de fevereiro de 2016

Reflexo-matriz

Reforma Íntima Sem Martírio - Capítulo 10


"Em resumo, naquele que nem sequer concebe a ideia do
mal, já há progresso realizado; naquele a quem essa ideia acode,
mas que a repele, há progresso em vias de realizar-se;"

O Evangelho Segundo o Espiritismo – Capítulo 8 - Item 7


Que ideia mais clara de reforma íntima se pode registrar que essa exposta acima?

Naquele cuja ideia do mal não faz parte de sua bagagem mental, encontramos a transformação moral efetivada.

Allan Kardec, no entanto, no item 4, capítulo 8, de O Evangelho Segundo o Espiritismo, deixa claro que o verdadeiro espírita seria reconhecido não só por esse aspecto moralizador, mas, igualmente, pelos esforços que emprega para domar as más inclinações. Nesse ângulo encontramos o outro estágio, aquele em que a ideia do mal acode e é repelida.

Será reducionismo definir o processo renovador da vida íntima por meros critérios de aparência exterior. Ser espírita é uma vivência ética que reflete e, ao um só tempo, induz profundas metamorfoses no campo da mente. Dessa forma, deixa de ser conceito religioso para alcançar o nível de sagrada viagem pelos escaninhos da alma, pelo autodescobrimento e pela conduta.

No reino mental encontramos complexos mecanismos que operam a formação da personalidade como sendo uma identidade temporária do Espírito nas sendas evolutivas. Subconsciente, consciente e superconsciente são níveis que interagem em perfeita ação conjunta, com funções específicas. No campo da subconsciência encontramos o reflexo e a emoção induzindo, para o consciente, o projeto das ideias que vão se unir para compor atitudes e palavras nos rumos da perfeição ou no cativeiro das expiações dolorosas.

Portanto, a cadeia reflexo, emotividade, ideia, ação, palavra compõem a fisiologia da alma.

Os reflexos são como personalidades indutoras estabelecendo o automatismo dos sentimentos externados em atitudes e palavras. Nesse circuito vivemos e decidimos, progredimos ou estacionamos. Não será incorreto, conquanto os muitos conceitos, definir personalidade como sendo núcleos dinâmicos e gestores de sentimentos funcionando sob automatismo mental contínuo. São essas muitas personalidades construídas nas múltiplas vivências da alma que formam os alicerces das inclinações humanas – tendências, impulsos, desejos, intenções e hábitos.

Na usina da mente, o pensamento exerce a função de supervisão ininterrupta da rotina mental, sob a gerência da vontade, expedindo ordens de aprovação ou censura pela utilização da inteligência, a qual decide e avalia os estímulos recebidos da vida. Somente depois dessas intrincadas operações é que são acionados os sentimentos, que esculpirão a natureza afetiva de toda essa sequência, conduzindo a alma a perceber os ditames da consciência nessa sucessão vertiginosa de movimentos sublimes da alma. Por isso os pensamentos precisam ser muitos vigiados para não induzirem as velhas emoções, as quais associamos às experiências da atitude, conforme os roteiros que escolhemos durante milênios.

Nessa sequência de vida mental, encontramos o reflexo-matriz do interesse pessoal como sendo a origem da rotina das operações psíquicas e emocionais, as quais convergem para o que os nomeamos como personalismo – a parcela doentia do ego.

Assim ponderamos porque o interesse individual em si mesmo é uma necessidade para o progresso. Seu excesso, no entanto, gerou essa fixação prolongada da alma no narcisismo – a paixão pelo que imaginamos ser.

Com razão asseveram os Orientadores Espirituais da Codificação: "Frequentemente, as qualidades morais são como, num objeto de cobre, a douradura que não resiste à pedra de toque. Pode o homem possuir qualidades reais que levem o mundo a considerá-lo homem de bem. Mas essas qualidades, conquanto assinalem um progresso, nem sempre suportam certas provas e, às vezes, basta que se fira a corda do interesse pessoal para que o fundo fique a descoberto. O verdadeiro desinteresse é coisa ainda tão rara na Terra que, quando se patenteia, todos o admiram como se fora um fenômeno" (1).

Por causa dessa estrutura de sustentação psicológica do personalismo, vivemos, preponderantemente, em torno daquilo que imaginamos que somos, sustentados por convicções e hábitos que irrigam todo o cosmo pensante do ser com ideias e sentimentos irreais ou deturpados sobre nós mesmos. São as ilusões. Sua manifestação mais saliente é a criação de uma autoimagem superdimensionada em valores em conquistas que supomos possuir.

Lutamos há milênios com a força descomunal desse reflexo-matriz que dirige, por automatismo, até mesmo, a maioria de nossas escolhas.

Em razão disso, quando temos o interesse pessoal contrariado, magoamos; quando feridos, penetramos no melindre; quando ameaçados, tombamos na insegurança; quando traídos, caímos na revolta; quando lesados, inclinamos ao revide.

Podemos, entretanto, mudar esse quadro, pois Freud, um dos mais célebres cientistas das ciências psíquicas, dizia que, em matéria de impulsos, depositava esperanças no futuro por considerar os seres humanos educáveis.

O desenvolvimento de novos hábitos constitui a terapêutica para nossos impulsos egoístas. A caridade, entendida como criação de relações educativas, será medida libertadora dessa escravidão dolorosa nos costumes humanos.

O treino da empatia, o aprendizado de saber ouvir, o cultivo do respeito à vida alheia, a cautela no uso das palavras dirigidas ao próximo, a sensibilidade para com os dramas humanos, as atitudes de solidariedade efetiva e renovadora são autênticos ensaios das qualidades superiores que vão, pouco a pouco, desenvolvendo o novo reflexo do interesse universal, desenovelando as branduras do altruísmo e do amor – reflexos celestes do Pai, nos quais todos fomos criados, distantes do mal e da dor.

Quando alcançarmos esse patamar, podemos afirmar com Kardec: "Em resumo, naquele que nem sequer concebe a ideia do mal, já há progresso realizado".

1. O Livro dos Espíritos – Questão 895.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Espíritas Não Praticantes?

Reforma Íntima Sem Martírio - Capítulo 9

"Nem todos os que me dizem: Senhor! Senhor! entrarão no reino dos céus;"

O Evangelho Segundo o Espiritismo – Capítulo 18 - Item 6

Que conceito, afinal, devemos ter sobre ser espírita? Será coerente e proveitoso admitirmos, nos roteiros educativos da Doutrina Espírita, a figura tradicional do "religioso não praticante"? Será que devemos oficializar essa expressão a fim de prestigiar aqueles que ainda não se julgam espíritas? Essas são mais algumas indagações a cogitar na formação de uma ideia mais lúcida sobre a natureza da proposta educativa do Espiritismo para a humanidade.

Ouvem-se, com certa frequência nos ambientes doutrinários, algumas frases que expressam dúbias interpretações sobre o que seja ser espírita. Companheiros que ainda não se sentem devidamente ajustados aos parâmetros propostos pelos roteiros da codificação dizem: "Ainda não sou espírita, estou tentando!", outros, desejosos em amealhar algum crédito de aceitação nos grupos, dizem: "Quem sou eu para ser espírita?!", "Quem sabe um dia serei!".

Com todo respeito a quaisquer formas de nos manifestar sobre o assunto, não podemos deixar de alertar que somente uma incoerência de conceitos pode ensejar ideias dessa natureza, agravadas pela possibilidade de estarmos prestigiando o indesejável perfil do ativista não praticante, aquele que adere à filosofia mas não assume em si mesmo os compromissos que ela propõe.

Ser espírita é algo muito dinâmico e pluridimensional. Tentar enquadrar esse conceito em padrões rígidos é repetir velhos procedimentos das práticas exteriores da religiosidade milenar. Nossas vivências nesse setor levaram-nos a adotar, como critério de validade, alguns parâmetros muito vagos e dogmáticos para aferir quem seria verdadeiramente seguidor do bem e da mensagem do Cristo. Parâmetros com os quais procuramos fugir das responsabilidades criando artifícios para a consciência, gerando facilidades de toda espécie por meio de rituais e cerimônias que entronizaram o menor esforço nos caminhos da espiritualização humana.

Ser espírita é ser melhor hoje do que ontem, e buscar amanhã ser melhor do que hoje; é errar menos e acertar mais; é se esforçar no domínio das más inclinações e transformar-se moralmente, conforme destaca Kardec. Nessa ótica, temos que admitir uma classificação muitíssimo maleável para considerar quem é e quem não é espírita.

Façamos, assim, algumas reflexões puramente didáticas sobre esse tema, sem nenhuma pretensão de concluí-lo, mas com intenção cristalina de problematizar nossos debates fraternos. Tomemos por base o tema da transformação íntima, o qual deve sempre ser a referência prioritária na melhor assimilação do que propõe a finalidade do Espiritismo.

Na primeira etapa, a criatura chega à casa espírita. Na segunda, o conhecimento doutrinário penetra os meandros da inteligência, e na terceira, a mais significativa, o Espiritismo brota de dentro dela para espraiar-se no meio onde atua, gerando crescimento e progresso. São três etapas naturais que obedecem ao espírito de sequência, da qual ninguém escapa. Fases para as quais jamais poderemos definir critérios de tempo e expectativa para alguém, a não ser para nós próprios. Fases que geram responsabilidades a cada instante de contato com as Verdades imortais, mas que são determinadas, única e exclusivamente, pela consciência individual, não sendo prudente estabelecer o que se espera desse ou daquele coração, porque cada qual enfrentará lutas muito diversificadas nos campos da vida interior.

O critério moral, portanto, deve preponderar sobre qualquer noção que essa ou aquela pessoa utilize para se considerar espírita. Nessa ótica encontramos o espírita da ação, aquele batalhador, tarefeiro, doador de bênçãos, estudioso, que se movimenta em torno das práticas. Temos, também, o espírita da reação, o que reage de modo renovado aos testes da vida em razão de estar se aplicando afanosamente à melhoria de si mesmo. Sem desejar criar rótulos e limitação indesejáveis, digamos que o primeiro está conectado com o movimento espírita, e o segundo com a mensagem espírita. O movimento é a ação dos homens na comunidade, enquanto a mensagem é a essência daquilo que podemos trazer para a intimidade com base nessa movimentação. O ideal é que, através da escola da ação no bem, consolide-se o aprendizado das reações harmonizadas na formação da personalidade ajustada com a Lei Natural do amor.

O espírita não é reconhecido somente nos instantes em que encanta a multidão com a sua fala, ou quando arrecada gêneros para a campanha do quilo, por sua lavra inspirada na divulgação, ou mesmo pela tarefa de direção. Essas são ações espíritas salutares e preparatórias para o desenvolvimento de valores na alma, mas o serviço transformador do campo íntimo, que qualifica o perfil moral do autêntico espírita, é medido por seu modo de reagir às circunstâncias da existência, pelo qual testemunha a intensidade dos esforços renovadores de progresso e crescimento a que tem se ajustado. Pelas reações mensuramos se estamos ou não assimilando no mundo íntimo as lições preciosas da espiritualização. A ação avalia nossas disposições periféricas de melhoria, todavia, somente as reações são o resultado das mudanças profundas, e apenas em situações adversas ou na convivência com os contrários temos como aquilatar em que níveis se encontram.

Melhor seria que não aderíssemos à ideia incoerente do "espírita não praticante", para não estimularmos as fantasias do menor esforço, que ainda é uma forte tendência de nossas vivências espirituais. A definição de um posicionamento transparente nessa questão será uma forma de estimular nossa caminhada, razão pela qual devemos ser claros e livres de subterfúgios ao declarar nossa posição perante os imperativos da vivência espírita. A costumeira expressão: "estou tentando ser espírita", na maioria das ocasiões, é mecanismo psicológico de fuga da responsabilidade; é a criatura que sabe que não está fazendo tanto quanto deveria, conforme seus ditames conscienciais, justificando-se perante si mesmo e os outros.

Libertemo-nos das capas e máscaras e cultivemos nas agremiações kardecistas o mais límpido diálogo sobre nossas necessidades e qualidades nas lutas pelo aperfeiçoamento.

Formaremos, assim, uma corrente de autenticidade e luz que se reverterá em vigorosa fonte de estímulo e consolo às angústias do crescimento espiritual.

Deixemos de lado essa necessidade insensata de definirmos conceitos estreitos e padrões engessados que não nos auxiliam a ser melhores que somos. Aceitemos nossas imperfeições e devotemo-nos com sinceridade e equilíbrio ao processo renovador. Estejamos convictos de um ponto em matéria de melhoria espiritual: só faremos e seremos aquilo que conseguirmos, nem mais, nem menos. O importante é que sejamos o que somos, sem essa necessidade injustificável de ficar criando rótulos para nosso estilo ou forma de ser.

Certamente, em razão disso, o baluarte dos Gentios asseverou em sua primeira carta aos Coríntios, capítulo 15, versículos 9 e 10: "...não sou digno de ser chamado apóstolo, ...mas pela graça de Deus, já sou o que sou...".

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Arrependimento Tardio

Reforma Íntima Sem Martírio - Capítulo 8


“Aliás, o esquecimento ocorre apenas durante a vida corpórea. Volvendo à vida espiritual, readquire o Espírito a lembrança do passado;”

O Evangelho Segundo o Espiritismo – Capítulo 5 - Item 11

Na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas recebemos variadas comunicações de almas arrependidas que foram, algumas delas, enfeixadas pelo senhor Allan Kardec, na obra O Céu e o Inferno, sob o título “Criminosos Arrependidos” – um incomparável estudo sobre os efeitos do arrependimento depois da desencarnação.

O tema arrependimento é muito valorizado entre nós na erraticidade, porque raramente, sob as ilusões da matéria, a alma tem encontrado suficiente coragem para enfrentar a força dos sutis mecanismos de defesa criados pelo orgulho, deixando sempre para amanhã – um amanhã incerto, diga-se de passagem – a análise madura e sincera de suas faltas, o que traria muito alívio, saúde e paz interior.

Era manhã no Hospital Esperança. Após os afazeres da rotina, deixamos nossa casa em bairro próximo e rumamos para as atividades do dia. A madrugada havia sido de muito trabalho nas esferas da crosta terrena. Após breve refazimento, nossa tarefa naquele dia que recomeçava era visitar a ala específica de espíritas em recuperação com o drama do arrependimento tardio.

Descemos aos pavilhões inferiores do hospital e chegando à ala para a qual nos destinávamos, fomos passando pelos corredores de maior sofrimento. Alas de confinamento, salas de atendimento e monitoramento, mais adiante alguns padioleiros com novas internações. No alto de uma porta larga, à semelhança daquelas nos blocos cirúrgicos dos hospitais terrenos, havia uma inscrição que dizia “entrada restrita”. Ali se encontravam os pacientes em estágios mentais agudos de arrependimento tardio.

Logo nas primeiras acomodações, rende à entrada, deparamo-nos com Maria Severiana. Sua fisionomia não apresentava as mesmas disposições do dia anterior. Cabisbaixa, sua face denotava ter chorado bastante durante a noite. Com todo cuidado que devemos à dor alheia, aproximamos carinhosamente:

— Bom dia Severiana!

— Bom dia nada, Ermance, estou péssima.

— O que houve, minha amiga? Ontem você se encontrava tão disposta...

— Muitos difícil dizer, não sei se posso.

— Se preferir, conversaremos logo mais.

— Não, não saia daqui, preciso de alguém velando comigo. Sou todo arrependimento e perturbação.

Quando segurava a mão de Severiana e ensaiava um envolvimento mais cuidadoso, Raul, assistente da ala, fez um sinal solicitando-nos a presença em pequeno posto alguns metros adiante.

— Que houve, Raul? Severiana ontem estava... — ele nem permitiu que continuássemos e disse:

— Sim, ela teve autorização para acessar a sua ficha reencarnatória. Foi uma noite tumultuada para ela, mas bem melhor que a maioria dos quadros costumeiros. A orientação é no sentido de que ela falei abertamente sobre o assunto para não criar as defesas inoportunas à sua recuperação. Graças a Deus, ela será acentuadamente no clima do arrependimento.

— Sim, Raul, grata pela informação.

Regressaremos, então, ao diálogo com a paciente, conduzindo-o com fins terapêuticos:

— Amiga querida, gostaria de expor seus dramas para nosso aprendizado?

— Ermance, é muito difícil a desilusão! A sensação de perda é enorme e sinto-me envergonhada. Sei que não fui uma mulher cruel, mas joguei fora enormes chances de vencer a mim mesma e ajudar muitas pessoas.

— Qual de nós, Severiana, tem sido exemplar na escola da reencarnação? Sabe, porventura, quantos espíritas chegam em quadros muito mais graves que o seu?

— Tenho pouca noção, no entanto, sinto-me como a mais derrotada das mulheres espíritas.

— Isso vai passar brevemente. O clima do arrependimento, embora doloroso a princípio, é a porta de acesso a indispensáveis posturas de reequilíbrio em relação ao futuro. Sem arrependimento não existe desilusão, e sem desilusão não podemos contar com a mais vantajosa das esperanças: o desejo de melhora enriquecido pela bênção das expectativas de recomeço. O exercício da desilusão é o antídoto capaz de atenuar os reflexos das enfermidades ou faltas que ainda transportamos para além-túmulo. Existe uma frase que considero sempre oportuna pelo seu poder consolador, a qual gostaria de ler para você; ela se encontra em O Evangelho Segundo o Espiritismo, capítulo 5, item 5, e diz: “Os sofrimentos que decorrem do pecado são-lhe uma advertência de que procedeu mal. Dão-lhe experiência, fazem-lhe sentir a diferença existente entre o bem e o mal e a necessidade de se melhorar para, de futuro, evitar o que lhe originou uma fonte de amarguras”.

— Eu lhe agradeço, amiga querida. Tenho fé que meu arrependimento será impulso, embora ainda não me sinta com forças suficientes para isso. Por agora parece que estou presa em mim mesma.

— Temporariamente será assim. Logo, você perceberá que é exatamente o oposto. Digamos que o arrependimento é uma chave que liberta a consciência dos grilhões do orgulho. Enquanto peregrinamos no erro sem querer admiti-lo, temos o orgulho a nos defender com a criação de inúmeros mecanismos para aliviar nossas falhas. Chega, porém, o instante divino em que, estando demasiadamente represadas as energias da culpa, em casos como o seu, a misericórdia atua de maneira a ensejar o reajuste e a corrigenda. Sem arrepender-se, o homem é um ser que foge de si mesmo em direção aos pântanos da ilusão, por onde pode permanecer milênios e milênios. Essa não é a sua situação. Em verdade, apesar da dor, você se redime nesse momento de um episódio recente, sem vínculos com outras quedas de seu passado mais distante. Agradeça a Deus pela ocasião e supere sua expiação. Descartando quaisquer fins de curiosidade vã, tenho orientações para auxiliá-la a tratar o assunto em seu favor, portanto, tenha coragem.

— Farei isso amiga, farei, custe-me quanto custar! Não quero mais viver sob os auspícios desse monstro do orgulho que trago em mim. Chega de ilusão!

Enchendo o peito de ar como quem iria enfrentar árdua batalha, começou a contar seu drama, nesses termos:

— Como sabes, fui espírita atuante nessa precedente romagem carnal. Adquiri larga bagagem doutrinária estando na direção de uma casa espírita. Conduzia com facilidade a organização, despertando simpatia e boa vontade. Fui vencida pelo velho golpe do personalismo, sentia-me muito grandiosa espiritualmente diante dos compromissos que desincumbia. Como sempre, é o assalto da vaidade que, com nossa invigilância, faz uma limpa em nosso coração roubando-nos qualquer chance de lucidez e abnegação. Passei a vida com um grave problema no lar. Minha filha Cidália era uma moça extremamente rancorosa e magoada comigo sem motivos para isso. Alegava, nas minhas avaliações, que éramos antigas inimigas do passado e, diante das atitudes cruéis que ela cometeu contra mim em plena adolescência, cheguei a estimular a piedade de muita gente no centro espírita em relação à minha dor. Alguns chegavam a me dizer que iria direto para sublimes esferas depois dessa prova. Em vez de encontrar alternativas cristãs para resolver nossas desarmonias, distraí-me com o fato de criar teoremas espíritas para explicar minha infelicidade, mas jamais me perguntei, com a sinceridade necessária, como solucionar esse drama. Guardava o desejo da pacificação, todavia, nada fazia por isso que fosse realmente satisfatório. Fantasias e mais fantasias rondavam minha experiência. Inúmeras orientações consideradas mediúnicas falavam em obsessores perseguindo minha filha e a mim. E agora, quando fui ler minha ficha, iniciei um ciclo novo e percebi que fui vítima da mentira que me agradou. Teorizei muito sobre o que me ocorria, e amei pouco. Entretanto, Ermance, o mais grave você não sabe, e estava lá anotado na ficha à qual ainda ontem tive acesso nos arquivos, aqui no Hospital Esperança. Algo que escondi de todos e jamais mencionei a ninguém, em tempo algum. Não poderia imaginar um caso como o meu. Nem sequer, apesar do conhecimento espírita, poderia supor uma historia tão incomum como a minha.

A essa altura da explanação, Severiana ruborizou-se e perdeu o fôlego. Suspirou sofregamente e continuou:

— Fui levada ao Espiritismo depois de uma tentativa frustrada de abortar uma filha com quatro semanas de gravidez. Tomada de uma depressão e debaixo das cobranças por ser mãe solteira, cheguei a me desequilibrar emocionalmente. O tempo passava e não tinha coragem para o ato nefando; por várias circunstâncias não cheguei a executá-lo. A filha nasceu, é Cidália a quem me referi, minha única filha. Guardei comigo o segredo e parti da Terra com ele sem que ninguém jamais pudesse imaginar que um dia estie disposta a esse crime. As leis divinas, no entanto, são perfeitas. Minha desilusão começou ontem. Em princípio amaldiçoei essa ficha e achei impiedoso que permitissem acessá-la. Agora, com muita luta, começo a compreender melhor.

— E que revelação tão dura lhe trouxe seus informes reencarnatórios?

— Cidália renasceu com o propósito de ser uma companheira valorosa e companhia enriquecedora para minha solidão na vida. As informações me deram notícia de que é uma alma enormemente frustrada nos roteiros do aborto e que, após quedas sucessivas, estava reiniciando uma caminhada de recuperação nas duas últimas existências corporais para cá. Contudo, o meu ato impensado de expulsá-la do ventre, em plena gestação inicial, traumatizou-a sensivelmente perante as lutas conscienciais que ela já carrega com o assunto. O registro emocional foi ameaçador ao psiquismo da reencarnante. Seu rancor e sua mágoa contra mim nasceram ali, e nada tinham com ausência de afinidade ou carmas do pretérito. Ao substituir a culpa da tentativa de aborto pelas ideias de um passado suspeito e não confirmado, nada mais fiz que tamponar minhas más intenções. As anotações finais da ficha davam nota de que, se tivesse sido sincera com Cidália e rogado perdão, desarticularia em seu campo psíquico um mecanismo defensivo, próprio de corações que faliram nos despenhadeiros do repugnante infanticídio. Fico aqui nas minhas amarguras me cobrando severamente, mas como poderia saber disso, Ermance? Não supunha que a simples intenção poderia ser tão nociva. Você acha que estou sendo muito rigorosa?

— Claro que sim, Severiana. Contudo, não abdique da oportunidade. É sua chance de refazer os caminhos e futuramente amparar Cidália. De fato, não tinha como saber disso, o que não a isenta da responsabilidade do ato. Faltou-te o auto-perdão e o desejo sincero do encontro com suas culpas. Essa tem sido a opção da maioria esmagadora da humanidade. Preferem a fuga a ter de fazer o doloroso encontro com a sombra. Sua experiência poderá ser muito útil aos amigos encarnados, caso me autorize a contá-la. Certamente, lhes ampliará um pouco a visão sobre as infinitas possibilidades que a vida apresenta, nos roteiros da nossa redenção espiritual. Nem reencarnações passadas, nem obsessões, nem carmas, puramente um episódio aparentemente fortuito da existência que lhe rendeu os frutos amargos dessa hora. Um conjunto de situações reunidas talhando a realidade de cada um. Nada por acaso, nada sem razoes explicáveis, conquanto nem sempre conhecidas.

— Oportunamente, quando estiver melhor, gostaria de lhe narrar alguns detalhes para que a minha queda seja alerta e orientação a outras pessoas. Por agora, peço sua ajuda e a de Deus para que consiga me auto-perdoar.

— Severiana, hoje você é a mãe caída e frustrada, entretanto a vida a convida para se tornar o exemplo para muitas almas.

— Você tem razão, Ermance. A ficha, que fichinha dolorosa! - exclamou melancólica - mencionava que, caso tivesse adotado a postura de me perdoar, poderia ter contado a inúmeras criaturas a minha intenção irrefletida, a inconveniência do ato abortista ou o mal que pode causar sua simples intenção. Ainda que desconhecendo os detalhes que agora conheço, poderia falar do que significa em dor para uma mãe trazer na lembrança, diante da excelsitude de uma criança que nasceu de seu ventre, as ideias enfermiças de que um dia teria pensado em roubar-lhe a vida. Enfim, aprendi que a simples intenção nos códigos da eterna justiça, dependendo dos compromissos de cada qual, é quase a mesma coisa que agir...

Severiana recuperou-se rapidamente e prepara-se para retornar como neta de Cidália. São passados pouco mais de dois decênios de sua queda, e sua alma espera a remissão nos braços da avó.

Todavia, quem arrepende precisa de muito trabalho reparativo e luz nos raciocínios. Foi o que fez a nossa amiga. Não cessou de amparar e servir. Enquanto aguardava sua oportunidade, integrou-se às equipes de serviço aos abortistas no Hospital Esperança e aprendeu lições preciosas de consolo pra seu próprio drama.

Se não existisse trabalho redentor na vida espiritual, as almas teriam que reencarnar com brevidade porque não suportariam o nível mental das recordações e perturbações do arrependimento.

O serviço em nosso plano é uma preliminar para as provas futuras na reencarnação.

Como sempre, o Livro-luz traz em suas páginas incomparáveis uma questão que resume com perfeição o caso que narramos. Eis a pergunta:

“Qual a consciência do arrependimento no estado espiritual?”

“Desejar o arrependido uma nova encarnação para se purificar. O Espírito compreende as imperfeições que o privam de ser feliz e, por isso, aspira a uma nova existência em que possa expiar suas faltas”(1).

1. O Livro dos Espíritos – Questão 991.