sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Kardec e a Educação Integral

Livro: LAÇOS DE AFETO
Autora Espiritual: Ermance Dufaux

PRIMEIRA PARTE
A Pedagogia do Afeto na Educação do Espírito

Capítulo 4

“Para agradar a Deus e assegurar a sua posição futura, bastará que o homem não pratique o mal?

“Não; cumpre-lhe fazer o bem no limite de suas forças, porquanto responderá por todo mal que haja resultado de não haver praticado o bem.”

O Livro dos Espíritos — Questão 642

Conhecida parábola da cultura oriental fala de uma senhora que resolveu abrigar um sábio guru no quintal de sua residência. Deu-lhe comida, abrigo e tranquilidade para que o homem de meditações pudesse cumprir sua missão.

Certa feita, desconfiada sobre a integridade do guru, resolveu aplicar-lhe uma prova. Contratou a preço de cinco moedas de ouro uma belíssima vendedora de ilusões e bailarina para aferir a resistência do homem santo. 

Na noite aprazada lá estava ela na cabana, tentando incendiar os apetites inferiores do guru com a sensualidade e a beleza. Bailou, despiu-se, provocou, mas o homem era de “gelo”, mantinha-se impassível, quieto, em estado de plenitude. Então, depois de longo tempo ela desistiu e retornou até a senhora dizendo:

- Tentei de tudo e nada, ele é um homem santo.

Intrigada, a hospedeira do guru indaga:

- Mas ele não lhe disse nada, não fez nada, uma só palavra?

- Não, senhora!

- Então toma tuas moedas, você fez sua parte.

Inusitadamente, a seguir ela tomou de uma larga vassoura e seguiu aos gritos em direção à cabana, assustando a vizinhança que conhecia o carinho com o qual tratava o meditador. Em lá chegando, espancou o homem, destruiu a cabana e em alta voz disse para que todos ouvissem:

- Testei esse homem com a luxúria, ele resistiu por três noites ao apelo de atraente e sedutora jovem, permaneceu em estado de orações, e quanto a isso eu o aplaudo. Porém, suas práticas são de nenhuma utilidade para o mundo, porque ele nada disse àquela jovem que pudesse servir de orientação e força na restauração de um caminho novo. Se é um homem de Deus, deveria agir pelo bem e não somente evitar o mal.

* * * * 

Evitar o mal necessariamente não edifica valores, enquanto fazer o bem significa acionar os recursos divinos latentes através do dinamismo da caridade.

Evitar o mal é contenção e disciplina, sendas formadoras de caráter, entretanto as realizações no bem sulcam a profundidade do sistema afetivo, fixando e dinamizando forças morais nobres.

Educação resume-se em transformar impulsos e desenvolver potencialidades. O ato de apenas conter sem renovar, pode levar aos mais sofridos caminhos da radicalização, do fanatismo e de variadas expressões neuróticas em direção a mais intensas desarmonias da psique.

O ato educativo é um ato de Amor nas relações que destinem ao crescimento para “ser”.

O processo de evitar o mal é adquirido com o domínio ocasionado pela disciplina dos sentidos e dos impulsos, enquanto a dinamização do bem exige da razão e do sentimento o desenvolvimento de condições interiores que edifiquem valores, treinem habilidades e façam surgir com maior plenitude as tendências inatas do bem que se encontram latentes e, quase sempre, “estáticas” na alma. Dessa forma, quando os Espíritos dizem: “Fazer maior soma de bem do que de mal constitui a melhor expiação" (1), é porque quase tudo conspira contrariamente para aquele que deseja melhorar, as reações são-lhe fortes reflexos do mundo interior desconhecido de si mesmo.

Diríamos que educar é encontrar respostas para os enigmas do existir, razão pela qual somente amando o outro e a nós mesmos conseguimos encontrar tais tesouros da vida.

Chamamos de integral o ato educativo com Amor, seja na prática pedagógica ou na vida de relação social.

A ausência de valores ético-morais dignificadores em nossas vidas sucessivas permitiram as perdas, as paixões, as crises, os traumas, os bloqueios e as traições, ferindo as fibras sensíveis da estrutura afetiva do perispírito, tendo como reflexos a culpa, o medo, a ansiedade, a frustração, a tristeza, o conflito, a insegurança e a indiferença quais fossem “nódulos e abcessos emocionais” que se apresentam em múltipla conotação psicopatológica, conforme o caráter de seus portadores, determinando o temperamento e a conduta. Agravados pela educação infantil da existência presente, tais “nódulos e abcessos” são inflamados e começam a purgar incontinentemente.

Diagnosticando esse dinamismo patológico, passa-se então à etapa do desenvolvimento das habilidades emocionais, capazes de promover novos e mais saudáveis sentimentos que libertem o ser dessa precariedade do afeto, quais sejam a coragem, a segurança, o autoamor, a serenidade, a alegria e a paz. A conquista dessas habilidades surge na busca pela autoeducação, regida pelas diretrizes evangélico-doutrinárias como excelente terapia curativa dessas “pústulas do sentimento”.

A educação do afeto inicia-se pelo estudo perseverante de si no conhecimento dessas manifestações sombrias do coração, suas raízes, suas armadilhas, suas máscaras. Posteriormente enseja uma nova forma de viver e “ser” pelo treino da empatia, da alteridade, da assertividade, da autenticidade.

O objetivo maior da vinda do homem à Terra é a sua melhora espiritual. Tal mister só será plenificado na medida em que aprender a amar, porque o Amor é o decreto sublime do universo para o crescimento e a felicidade de todos os seres.

Verificamos o centro espírita e sua importância como educandário do Amor face à didática estimuladora de conhecimentos e da vivência através da ampliação do saber e de transformação do caráter. As organizações humanas, com poucas exceções, fazem uma leitura adulterada das manifestações afetivas, tornando-as desprezíveis e com conotações de interesses inferiores e falsidade. Outras vezes, algumas pessoas mais afetuosas, quando possuem uma visão egocêntrica, recuam e tolhem a espontaneidade do carinho face aos desapontamentos das relações ingratas e decepcionantes. Assim, formam-se estigmas sociais acalentados pela maioria, sufocando as expressões de sensibilidade humana nas torres frias da indiferença e do desamor, para os quais a grande maioria dos homens foram “educados” no aprendizado de esconder o que se passa nos recônditos escaninhos do afeto.

Quanto nos valerá a reencarnação tendo os raciocínios iluminados pelos princípios estruturais da doutrina sem, contudo, jorrar essa luminosidade sobre o coração?

A fraternidade, expressando a síntese das virtudes cristãs, é a meta ética de todo o corpo filosófico e científico do Espiritismo. Eis, portanto, que tarefa grave aguarda nossas vanguardas doutrinárias no cenário conturbado da sociedade materialista dos dias atuais, junto às almas que ingressam para suas fileiras em ambos os planos existenciais.

1. O Livro dos Espíritos, questão 770 A

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Pestalozzi e a Educação do Coração

Livro: LAÇOS DE AFETO
Autora Espiritual: Ermance Dufaux

PRIMEIRA PARTE
A Pedagogia do Afeto na Educação do Espírito

Capítulo 3

Pestalozzi definiu a educação como sendo o desenvolvimento harmônico de todas as potencialidades do ser, considerando como elementos latentes básicos no interior da criatura humana a inteligência, o sentimento e a vontade. Para ele, essa tríade, sintetizada em educar a cabeça, o coração e as mãos, ganhava uma amplitude incomensurável quando se cria a relação de Amor entre educador e educando.

Johann Heinrich Pestalozzi, sem dúvida, foi o educador do Amor. A ele devemos o mérito indiscutível de estabelecer as linhas afetivas da educação em maior proporção que outros pedagogos, demonstrando na sua própria vivência a eficácia de conduzir o processo educacional em elos de afeto.

Assinalamos em suas palavras na “Carta de Stans” (1) a grandeza de suas concepções, como segue:

“Minha meta principal direcionou-se, antes de mais nada, a tornar as crianças irmãs, cultivando os primeiros sentimentos da vida em comum e desenvolvendo suas primeiras faculdades nesse sentido. Com isso, minha intenção era fundir a casa no Espírito simples de uma grande comunidade familiar e, sobre a base de tal relacionamento e da predisposição por ele gerada, suscitar em todos um sentimento de justiça e moralidade.

Atingi meu objetivo com razoável sucesso. Em breve, viam-se setenta crianças mendigas, embrutecidas viverem juntas numa paz, num Amor, numa atenção recíproca e cordial que raramente se encontram entre irmãos de uma mesma família.

Minha ação, nessas circunstâncias, partia do seguinte princípio: procura em primeiro lugar fazer tuas crianças generosas. Pela satisfação diária de suas necessidades, impregnarás sua sensibilidade, sua experiência e sua ação de Amor e de caridade, que se estabelecerão e se consolidarão em seu íntimo. Depois, acostuma-as às práticas em que poderão exercitar e espalhar seguramente a benevolência em seu próprio círculo.”

A grande conquista da educação, segundo o mestre suíço, é a autonomia do homem pela maturidade de suas potências morais, que já se encontram em gérmen em seu mundo íntimo ao nascer.

As teorias modernas da psicologia têm demonstrado a importância essencial da emoção em todas as realizações humanas, confirmando por experiências e pesquisas sérias que o homem é dotado de múltiplas inteligências, sendo que suas habilidades emocionais são as mais aptas a fazer-lhe feliz e bem sucedido.

A visão “Pestaloziana” de educar, além de precursora, é perfeitamente compatível com a meta maior do Espiritismo, ou seja, o melhoramento moral da humanidade, a educação integral do homem bio-sócio-psíquico-espiritual.

Kardec, como aluno da escola de Yverdon, fundada por Pestalozzi, foi notadamente influenciado pela didática da tríade conhecida mais tarde como “Princípio do Equilíbrio de Potencialidades”, ou seja, mãos, corações e cabeça em harmonia. Nota-se em seu comentário na questão 917 de “O Livro dos Espíritos” o quanto essa cultura do emérito pensador suíço marcou sua formação quando diz: “A educação, convenientemente entendida, constitui a chave do progresso moral. Quando se conhecer a arte de manejar os caracteres, como se conhece a de manejar as inteligências, conseguir-se-á corrigi-los, do mesmo modo que se aprumam plantas novas. Essa arte, porém, exige muito tato, muita experiência e profunda observação”.

Esse desenvolvimento harmônico implica fazer crescer o intelecto, o afeto e a ação, não sendo demais afirmar que a coerência entre pensar, sentir e fazer respondem pelo equilíbrio do ser integral.

Temos desenvolvido a razão, mas, temos trabalhado o afeto? Temos disseminado conteúdos espíritas a mancheias, mas os temos contextualizado à vida?

Trabalhamos pela aquisição da fé racional, contudo, semelhante valor só será angariado na ética do “ser”, ou seja, na vivência das “Virtudes Paternas” ínsitas em nosso patrimônio sublime, prestes a descobrirmos pelas vias da evolução.


1. Trecho da “carta de Stans” na qual é narrada a experiência vivida por esse educador incomparável. Em Stans, ele cuidou sozinho de 80 crianças órfãs da guerra civil deflagrada pela revolução Helvética. “Educação e Ética - Pestalozzi” - Dora Incontri - Editora Scipione.