sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Estudando a Arrogância 1

Escutando Sentimentos - Capítulo 8


"Assim não deve ser entre vós; ao contrário, aquele que quiser tornar-se o maior, seja vosso servo; - e, aquele que quiser ser o primeiro entre vós seja vosso escravo."
(S. Mateus, capítulo XX, vv. 20 a 28.)

O Evangelho Segundo o Espiritismo - Capítulo 7 - Item 4

Arrogância, eis um tema de extrema importância para ser meditado em nossos núcleos de amor cristão.

Tenho arrogância? Como descobri-la? O que é arrogância? Um sentimento ou uma atitude? Qual a sua origem? Como se manifesta? Como perceber a atitude arrogante? Que fazer para superar essa doença moral? Como espíritas somos arrogantes? Como? Quando? Por que existe ainda a arrogância em nossa conduta, apesar do conhecimento doutrinário?

Os Sábios Guias da Verdade oportunamente responderam ao senhor Allan Kardec: "De todas as imperfeições humanas, o egoísmo é a mais difícil de desenraizar-se porque deriva da influência da matéria, influência de que o homem, ainda muito próximo de sua origem, não pôde libertar-se e para cujo entretenimento tudo concorre: suas leis, sua organização social, sua educação".

O estudo do sentimento de egoísmo constitui elemento fundamental no entendimento de nossas necessidades espirituais. Significa estudar nossa própria história evolutiva. A sutil diferença entre pensar excessivamente em si e pensar em si com benevolência pode determinar a natureza de todos os sentimentos humanos. O excesso de interesse por si mesmo é um ciclo de ilusões que se repete sustentando o auto-desamor em milênios de perturbação. A benevolência é a bondade efetiva que caminha de braços dados com a edificação da paz interior.

O codificador ponderou: "Não; a paixão está no excesso de que se acresceu a vontade, visto que o princípio que lhe dá origem foi posto no homem para o bem, tanto que as paixões podem levá-lo à realização de grandes coisas. O abuso que delas se faz é que causa o mal." (1)

Na fieira do tempo o egoísmo sofreu mutações infinitas que compõem a versatilidade de toda a estrutura sentimental do Ser. O abuso desses "germens de luz" tem constituído entrave ao longo dos tempos. A paixão - ausência de domínio sob gerência da vontade - ensejou reflexos perniciosos, cujas raízes encontram-se no egocentrismo - o estado mental de fechamento nas nossas próprias criações.

Nessa linha de evolução, o instinto de conservação desenvolveu a posse como sinônimo de proteção, vindo a constituir o núcleo da tormenta humana como asseveram acima os Sábios Orientadores da Verdade: "(...) o egoísmo é a mais difícil de desenraizar-se porque deriva da influência da matéria (...)."

Alicerçados na necessidade apaixonada de proteção material, enlouquecemos através da posse e a conduta arrogante ensejou-nos a concretização dessa atitude de egoísmo.

O princípio que gera a arrogância foi colocado no homem para o bem. É a ânsia de crescer e realizar-se. O impulso para progredir. O instinto de conservação que prevê a proteção, a defesa. Tais princípios são os fatores de motivação para a coragem, a ousadia, o encanto com os desafios. Graças a eles surgem os líderes, o idealismo e as grandes realizações inspiradas em visões ampliadas do futuro. O excesso de tudo isso, no entanto, criou a paixão. A paixão gerou o vício. O vício patrocinou o desequilíbrio.

Comparemos o egoísmo como sendo o vírus e a arrogância a doença, seus efeitos nocivos e destruidores.

Arrogância, "qualidade ou caráter de quem, por suposta superioridade moral, social, intelectual ou de comportamento, assume atitude prepotente ou de desprezo com relação aos outros; orgulho ostensivo, altivez". Esse o conceito dos dicionários humanos. (2)

No sentido espiritual podemos inferir vários conceitos para o sentimento de arrogar. Vejamos alguns: exacerbada estima a si mesmo. Supervalorização de si. Autoconceito super dimensionado. Desejo compulsivo de se impor aos demais.

O egoísmo é o sentimento básico. Arrogância é a atitude íntima derivada desse alicerce de sensações nascidas no coração ocupado, exclusivamente, com seu ego. Uma compulsiva necessidade de ser o primeiro, o melhor, manifestada através de um cortejo de pensamentos, emoções, sensações e condutas que determinam o raio espiritual no qual a criatura transita.

Asseveram os Sábios Guias: "(...) a paixão está no excesso de que se acresceu a vontade, visto que o princípio que lhe dá origem foi posto no homem para o bem, tanto que as paixões podem levá-lo à realização de grandes coisas. O abuso que delas se faz é que causa o mal".

Façamos um pequeno gráfico*. Escreva a palavra arrogância e a circule. Agora faça quatro traços nos pontos cardeais e escreva: rigidez, competição, imprudência, prepotência. Novamente faça um círculo em torno desses pontos e escreva: estado orgulhoso de ser. Feche um novo círculo.

Essas são as quatro ações mais perceptíveis em decorrência do ato de arrogar que estruturam expressiva maioria dos estados psicológicos e emocionais do Ser. A partir desse estado orgulhoso de ser, podemos perceber um quadro mental de rígida auto-suficiência, do qual nascem as ilusões e os equívocos da caminhada humana, arrojando-nos aos despenhadeiros da insanidade aceitável e da rivalidade envernizada.

O traço predominante na personalidade arrogante é a não conformidade. Usada com equilíbrio, é fonte de crescimento e progresso. Todavia, sob ação dos reflexos da posse e do interesse pessoal, que marcaram, acentuadamente, nossas reencarnações, esse traço atingiu o patamar de rebeldia e obstinação enfermiça.

A rebeldia tornou-se um condicionamento psicológico que dilata as ações da arrogância. Uma lente de aumento que decuplica e acelera as mutações da auto-suficiência.

Estudemos, portanto, as atitudes pilares da arrogância sob as lentes da rebeldia.

A rigidez é a raiz das condutas autoritárias e da teimosia que, frequentemente, deságuam nos comportamentos de intolerância. Sob ação da rebeldia, patrocina o desrespeito ao livre-arbítrio alheio e alimenta constantemente o melindre por a vida não ser como ele gostaria que fosse.

A competição não existe sem a comparação e o impulso de disputa. Quando tomado pela paixão, a força motriz de semelhante ação é o sentimento de inveja. Na mira da rebeldia, causa o menosprezo e a indiferença que tenta empanar o brilho de outrem. A competição é o alimento do sentimento de superioridade.

A imprudência é marcada pela ousadia transgressora que não teme e nem respeita os limites. Quase sempre, essa inquietude da alma alcança o perfeccionismo e a ansiedade que, frequentemente, deságuam na necessidade de controle e domínio. Consubstanciam modos rebeldes de ser. Desejo de hegemonia. Sentimento de poder.

A prepotência é um efeito natural da perspicácia que pode insuflar a megalomania, a presunção. Juntos formam o piso da vaidade. A rebeldia, nesse passo, conduz a uma desmedida necessidade de fixar-se em certezas que adornam posturas de infalibilidade.

Conforme o temperamento e a história espiritual particular, a arrogância manifesta-se com maior ou menor ênfase em uma das quatro ações descritas, criando efeitos variados no comportamento. Apesar disso, a cadeia de reflexos íntimos é muito similar.

Egoísmo que na sua mutação transforma-se em arrogância; essa, por sua vez, deriva um cortejo de outros sentimentos sob ação do orgulho e da rebeldia.

A arrogância retira-nos o "senso de realidade". Acreditamos mais naquilo que pensamos sobre o mundo e as pessoas do que naquilo que são realmente. Por essa razão, esse processo da vida mental consolida-se como piso de inumeráveis psicopatologias da classificação humana. A alteração da percepção do pensamento é o fator gerador dos mais severos transtornos psiquiátricos. São as manifestações enfermiças do eu na direção do narcisismo. Na rigidez, eu controlo. Na competição, eu sou maior. Na imprudência, eu quero. Na prepotência, eu posso. A arrogância pensa a vida e, ao pensá-la, afasta-nos dos nossos sentimentos.

Essa desconexão com a realidade estabelece a presença contínua das fantasias no funcionamento mental, isto é, a "interpretação ou imagem desvirtuada" que a pessoa alimenta acerca de fatos, pessoas e coisas. Nesse passo existem dois tipos psicológicos mais comuns. A arrogância voltada para o passado, quando há uma fixação em mágoas decorrentes da inaceitação de ocorrências que, na sua excessiva auto-valorização, o arrogante acredita não merecê-las. O outro tipo é a arrogância dirigida ao futuro, quando a criatura vive de ideais, no mundo das idéias, acreditando-se mais capaz e valorosa que realmente o é. Passível de realizar grandes e importantes missões. Tais "deslocamentos da mente" são formas de evadir de algo difícil de aceitar no presente. De alguma maneira, constituem mecanismos protetores, todavia, quando se prolongam demasiadamente, podem gerar enfermidades psíquicas. A depressão é resultado da arrogância voltada ao passado. E a psicose em relação ao futuro.

Interessante observar que uma das propriedades psicológicas doentias mais presentes na estrutura rebelde da arrogância é a incapacidade para percebê-la. O efeito mais habitual de sua ação na mente humana. Basta destacar que dificilmente aceitamos ser adjetivados de arrogantes. Entretanto, um estudo minucioso nos levará a concluir que, raríssimas vezes na Terra, encontraremos condutas livres dessa velha patologia moral.

Relacionemos outros efeitos dessa doença:

01. Perda do autodomínio.

02. Apego a convicções pessoais.

03. Gosto por julgar e rotular a conduta alheia.

04. Necessidade de exercício do poder.

05. Rejeição a críticas ou questionamentos.

06. Negação de sentimentos.

07. Ter resposta para tudo.

08. Desprezo aos esforços alheios.

09. Imponência nas expressões corporais.

10. Personalismo.

11. Auto-suficiência nas decisões.

12. Bloqueio na habilidade na empatia.

13. Incapacita para a alteridade.

14. Turva o afeto.

15. Acreditar que pode mais do que realmente é capaz.

16. Buscar mais de que necessita.

17. Querer ir além de seus limites.

18. Exigir mais do que consegue.

19. Sentir que somos especiais pelo bem que fazemos.

20. Supor que temos a capacidade de dizer o que é certo e errado para os outros.

21. Sentir-se com direitos e qualidades em função do tempo de doutrina e da folha de serviços.

22. Acreditar que temos a melhor percepção sobre as responsabilidades que nos são entregues em nome do Cristo.

23. Julgar-se apto a conhecer o que se passa no íntimo de nosso próximo.

24. Desprezar o valor alheio.

A ausência de consciência sobre esse sentimento e suas manifestações de rebeldia tem sido responsável por inúmeros acidentes da vida interpessoal. Mesmo entre os seguidores das orientações do Evangelho, solapam as mais caras afeições, levando muita vez a tomar os amigos como autênticos adversários como destaca a questão 917 de O Livro dos Espíritos:

"Quando compreender bem que no egoísmo reside uma dessas causas, a que gera o orgulho, a ambição, a cupidez, a inveja, o ódio, o ciúme, que a cada momento o magoam, a que perturba todas as relações sociais, provoca as dissensões, aniquila a confiança, a que o obriga a se manter constantemente na defensiva contra o seu vizinho, enfim a que do amigo faz inimigo, ele compreenderá também que esse vício é incompatível com a sua felicidade e, podemos mesmo acrescentar, com a sua própria segurança".

Ter autoconsciência é uma das habilidades da inteligência emocional. Saber dar nome aos nossos sentimentos é fundamental no processo de crescimento e reforma interior. A arrogância que costumamos rejeitar como característica de nossa personalidade é responsável por uma dinâmica metamorfose dos sentimentos.

A ignorância de seus efeitos em nossa vida é explorada pelos gênios astutos da perversidade no planeta.

Necessário registrar que os apontamentos sobre a arrogância aqui transcritos foram embasados no livro "Porta Larga, o Caminho da Perdição Humana". Um exemplar utilizado nas escolas da maldade em núcleos organizados da erraticidade, arquivado na biblioteca do Hospital Esperança quando seu próprio autor foi resgatado e socorrido por Eurípedes Barsanulfo há algumas décadas. Hoje reencarnado no seio do Espiritismo, esse escritor das penas vãs busca sua redenção na luta contra sua própria arrogância. O gráfico que sugerimos, também da autoria de nosso irmão, é usado em inúmeras plataformas de estudos com finalidades hegemônicas em clãs da perversidade.

O livro, que ainda permanece arquivado em nosso centro de estudos, é um exemplar de inteligência psicológica cujo propósito é combater a mensagem evangélica do Cristo embasada na humildade. Segundo o autor, a arrogância é a porta larga para implantação do caos no orbe terreno.

"Assim não deve ser entre vós; ao contrário, aquele que quiser tornar-se o maior, seja vosso servo; - e, aquele que quiser ser o primeiro entre vós seja vosso escravo".

Por que essa compulsão por ser o maior em uma obra que não nos pertence? Se a obra é do Cristo, por que a anti-fraternidade?

Considerando tais reflexões acerca dessa doença dos costumes, teçamos algumas ponderações que nos motivem a algumas auto-aferições à luz da claridade espírita.

* Gráfico proposto pela autora espiritual (nota do médium).

1. O Livro dos Espíritos - questão 907- comentário de Allan Kardec.
2. Dicionário Houaiss.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Carta de Misericórdia

Escutando Sentimentos - Capítulo 7


"Como é que vedes um argueiro no olho do vosso irmão, quando não vedes uma trave no vosso olho? - Ou, como é que dizeis ao vosso irmão: Deixa-me tirar um argueiro ao teu olho, vós que tendes no vosso uma trave? - Hipócritas, tirai primeiro a trave ao vosso olho e depois, então, vede como podereis tirar o argueiro do olho do vosso irmão.
(S. Mateus, cap. VII, vv. 3 a 5). 

O Evangelho Segundo o Espiritismo - Capítulo 10 - Item 14

Um dos efeitos mais inconfessáveis da arrogância em nossos relacionamentos é a nossa falta de habilidade para conviver com honestidade emocional perante o brilho dos êxitos alheios.

Com rara facilidade, sob ação fascinadora da arrogância, julgamos-nos os melhores naquilo que fazemos. Esse é um efeito dos mais perceptíveis do estado orgulhoso de ser, isto é, a propriedade mental de nos toldar a visão para enxergar o quanto nos iludimos com as fantasias do ego.

O senhor Allan Kardec teve ensejo de destacar: "Com efeito, como poderá um homem, bastante presunçoso para acreditar na importância da sua personalidade e na supremacia das suas qualidades, possuir ao mesmo tempo abnegação bastante para fazer ressaltar em outrem o bem que o eclipsaria, em vez do mal que o exalçaria?" (1).

Na maioria das vezes, o mérito alheio ainda é recebido no nosso coração como uma ameaça ou até mesmo uma afronta. Raramente, admitimos tal verdade. O hábito milenar de racionalizar nossos sentimentos constitui uma couraça psicológica enrijecida pelo orgulho.

"O orgulho vos induz a julgar-vos mais do que sois; a não suportardes uma comparação que vos possa rebaixar; a vos considerardes, ao contrário, tão acima dos vossos irmãos, quer em espírito, quer em posição social, quer mesmo em vantagens pessoais, que o menor paralelo vos irrita e aborrece." Um Espírito protetor. (Bordéus, 1863). (2)

A educação dos sentimentos depende de abundante honestidade emocional para conduzir-nos à verdade sobre nós mesmos. Sem consciência de suas raízes, jamais admitiremos a presença do ciúme e da inveja - monstros roedores da paz interior.

Combalidos por antigas frustrações, desgostosos conosco mesmo, sentimo-nos desvalorizados, tomados por uma sensação de inutilidade e abandono que tentamos mascarar com alegrias fictícias e conquistas perecíveis. Nesse clima psicológico, como cultivar empatia e entusiasmo com as virtudes alheias?

Os relacionamentos a todo instante sofrem os efeitos indesejáveis da carga vibratória dessas desconhecidas sombras íntimas, criando estados de desconforto que estipulam a antipatia ou mesmo a aversão, sem que haja, de nossa parte, qualquer intenção nesse sentido. São reflexos automáticos que trazemos na vida mental, com enorme poder de ação sobre as atitudes, sem que disso tenhamos consciência.

E o que é mais grave: por desconhecer a natureza dessas emoções, vemos o argueiro no olho alheio, sendo que temos uma trave em nossa visão espiritual, conforme a assertiva evangélica. Sentimos que as relações não vão bem, mas por incapacidade ou falta de habilidade em analisar a nós próprios, instintivamente fazemos uma projeção na tentativa de descobrir do lado de fora, aquilo que, em verdade, está dentro de nós.

Que nenhum discípulo de Jesus, perante os fracassos e perdas na vida interpessoal, julgue-se derrotado ou mal-intencionado. Nos serviços da Obra Cristã nos quais somos colaboradores iniciantes, jamais devemos nos permitir desacreditar nas intenções sinceras que sustentam nossos ideais de ascensão. Quase sempre, elas constituem nossa única garantia legítima em direção aos projetos de iluminação espiritual que abraçamos.

Se assim nos pronunciamos é porque, mesmo entre os discípulos da Boa Nova, a nobreza de intenções não é suficiente para impedir os efeitos lamentáveis da altivez que carregamos em nossos corações. Por muito tempo ainda, lutaremos tenazmente na colheita infeliz dos reflexos de prepotência e competição, que assinalam nossos impulsos uns perante os outros.

É um processo natural da evolução. Nada há de errado em sentir o que sentimos. O problema surge quando rebelamos em aceitar e investigar a existência de semelhantes atitudes de cada hora.

Não agimos assim por mal. Deliberadamente. São as compulsões morais que geramos nas experiências sucessivas da ambição e da loucura nas vitórias perecíveis.

Perdoar e nos perdoar sempre será a solução. Olhemos para nós com lealdade, mas, igualmente, com carinho e misericórdia. Somos almas recém egressas das fileiras do mal. Estamos, a exemplo do Filho Pródigo da passagem evangélica, retomando nossos caminhos após as atitudes enfermiças do esbanjamento psicológico e emocional, que nos aprisionaram nas refregas do vazio existencial.

Segundo o benfeitor Calderaro, o capítulo dez de O Evangelho Segundo o Espiritismo, "Os Que São Misericordiosos", deveria ser um dos textos mais estudados entre nós, os seguidores da Doutrina Espírita.

Os ambientes educativos dos centros espíritas que não cultivarem a misericórdia terão enormes obstáculos com o conflito improdutivo - resultado da maledicência e da hipocrisia, da severidade e da intolerância.

Tolerância, indulgência, perdão, compaixão e benevolência são algumas das expressões morais imprescindíveis no trato de uns para com os outros. Sem essas atitudes de amor, como nos suportaremos?

A comunidade doutrinária espírita avizinha o momento de seu desabrochar para a maioridade. A consciência da extensão de nossas enfermidades nos levará a concluirmos que nosso movimento libertador é um hospital de vastas proporções e especificidade. Como doentes em busca da cura, reconheceremos as necessidades do amor, sem o qual adiaremos nossa alta médica. E que manifestação de amor aplicado mais palpável pode existir que a misericórdia?

Nada dói tanto aos seguidores sinceros de Jesus quanto a ofensa não intencional, as rusgas não desejadas, as perdas afetivas, as reações inesperadas de ingratidão, o vício em colecionar certezas irremovíveis que traduzem prepotência, a indiferença e o menosprezo. São os frutos da ausência de misericórdia no coração humano.

Enquanto procurarmos as causas das decepções de nossas relações no estudo das imperfeições, não encontraremos respostas satisfatórias às nossas indagações e nem consolo para nossa alma. Somente compreendendo sinceramente quais lições evangélicas deixamos de aplicar em cada passo do caminho, obteremos alento, orientação e estímulo. Misericórdia para com as imperfeições alheias, piedade para com nossas faltas!

Portanto, as casas espíritas orientadas pelas atitudes de amor adotem sem demora o projeto da misericórdia fraternal. Grupos que se reúnam em vivências de honestidade emocional. Que tenham bondade para tratar de seus sentimentos e discuti-los em equipe. Sinceros, porém, acolhedores. Grupos que possam olhar de frente para a arrogância que ainda nos domina, e que tenham coragem de confrontá-la em público. Grupos que saibam pedir perdão. Conjuntos doutrinários dispostos a estimular o brilho das qualidades uns dos outros e dispostos à compaixão com os defeitos e motivados pela abolição da rigidez mórbida.

No Hospital Esperança, Dona Modesta desenvolve uma atividade de fidelidade aos sentimentos. Chama-se Tribuna da Humildade. É um recurso terapêutico aplicado em pacientes depois de certo tempo de tratamento emocional. Depoimentos, cartas, pedidos de perdão, histórias de vida, fracassos e vitórias são apresentados como forma de cuidar dos sentimentos secretos, não admitidos durante a vida física.

Gostaríamos de passar aos amigos de ideal na carne a síntese de uma carta que foi lida por destacado líder espírita ao ocupar, oportunamente, a Tribuna. Não importa o que se passou ou o que virá, nosso intuito é pensarmos, a todo instante, que a aplicação da misericórdia é a virtude que abranda nossos corações e o testemunho da leveza em nossas almas.

Senhores e senhoras, irmãos de doutrina, paz na alma.

Vir aqui falar de meus sentimentos é uma honra. Só lamento que tenha descoberto tão tarde o bem que me faz falar do que sinto.

A vida física brindou-me com a benção de ser espírita. Três décadas e meia em ininterrupta e afanosa atividade doutrinária.

Sou uma vítima de mim mesmo. É incrível como ouvi tantas e tantas vezes, assim como acredito que tenha ocorrido igualmente com muitos aqui presentes, sobre a importância de perdoar e, no entanto, tal esclarecimento ficou apenas no cérebro. Impermeável ao coração.

Tenho aprendido sob custódia de Dona Modesta que, quando a lembrança de alguém vem em nossa mente e desperta maus sentimentos, estamos magoados. Segundo ela, a mágoa que permanece por mais de uma hora em nossa cabeça, desce para o coração. E só Deus sabe quando sairá daí...

É o meu caso! Deixei a mágoa por mais de uma hora na cabeça!

Talvez alguém possa perguntar: por que apenas sessenta minutos de mágoa na cabeça?

Segundo Dona Modesta, os sessenta minutos são suficientes para perguntar a nós mesmos por que nos magoamos, e descobrir em nós próprios os remédios para curar-nos. Livrar-nos das algemas da ofensa.

A princípio, pode parecer uma atitude ingênua e desproposital, mas somente quem já sofreu o bastante com as mágoas sabe da importância de exonerá-las o quanto antes da intimidade. Ao adquirir coincidência dos males que ela nos traz, temos mais motivos ainda para extirpá-las.

Eu trouxe durante décadas a lembrança desagradável de pessoas e situações que permiti morarem em meu pensamento por mais de uma hora na condição de opositores.

Olhei demais para fora e a doença desceu da cabeça para o coração.

Pois bem! Isso me custou um câncer, o desencarne prematuro, perdas afetivas muito caras, lágrimas sem conta, angústia interminável e isolamento.

Aqui estou eu diante de mim mesmo. E os meus supostos inimigos, aqueles que me feriram, onde e como estão?

Certamente seguem seus caminhos e não levam más lembranças, especialmente de minha pessoa.

Meus amigos, o drama é um só! Tivesse lucidez suficiente e bastariam sessenta minutos para descobri-lo!

Faltou-me honestidade emocional para admitir que fosse invejoso, ciumento, competitivo, avesso a críticas e melindroso. Meu orgulho impediu-me de admitir que outras pessoas fossem tão boas quanto eu naquilo que eu fazia. Fracassei em um dos testes mais difíceis da jornada humana: exaltar a importância do outro com legítima alegria no coração e "diminuir para que o Cristo crescesse". (3)

Em meu favor, apenas tenho as minhas intenções. Em nenhum momento, conscientemente, calculei conflitos ou interesses pessoais. Sou vítima de mim mesmo, do meu passado de semeadura na arrogância.

Tudo passou no tempo, mas ainda trago a mente presa ao passado. Isso é a mágoa no coração.

Permiti-me adoecer. Magoar é admitir ser ferido, machucado.

A cicatrização pode demorar. A minha está se processando somente depois da morte.

Como? Como cicatrizar essas úlceras que eu mesmo provoquei? Como esquecer? Foram as perguntas que fiz desesperadamente ao tomar maior consciência do quanto me faziam sofrer.

Dona Modesta, aqui presente, é testemunha da minha dor.

Como religiosos, raramente escapamos de uma velha armadilha: a presunção. Eu não escapei.

Por presunção tornei-me um exímio juiz dos atos alheios, recheado de certezas sobre a conduta dos outros, um psicólogo implacável do comportamento do próximo. Tinha nos lábios as explicações perfeitas para a atitude de todos que me ofenderam. Quanto a mim, sempre me desculpava.

Como pude ser tão descuidado!

Olhei demais para o argueiro do próximo e não vi minha própria trave.

É preciso muita coragem para nos confrontar! Admitir a presença da inveja. Reconhecer que todos os nossos dissabores começam em nós mesmos. Conscientizar que somos os únicos responsáveis pelo que sentimos. Que podemos a qualquer momento retomar nossa alegria, nossas metas, nosso processo de crescimento, conforme a orientação evangélica que já possuímos.

Foi então que surgiu uma palavra fundamental na minha recuperação. Misericórdia. Compaixão.

Permitam-me a leitura de um parágrafo que se tornou a fonte de inspiração para minha recuperação:

"Espíritas, jamais vos esqueçais de que, tanto por palavras, como por atos, o perdão das injúrias não deve ser um termo vão. Pois que vos dizeis espíritas, sede-o. Olvidai o mal que vos hajam feito e não penseis senão numa coisa: no bem que podeis fazer. Aquele que enveredou por esse caminho não tem que se afastar daí, ainda que por pensamento, uma vez que sois responsáveis pelos vossos pensamentos, os quais todos Deus conhece. Cuidai, portanto, de os expungir de todo sentimento de rancor. Deus sabe o que demora no fundo do coração de cada um de seus filhos. Feliz, pois, daquele que pode todas as noites adormecer, dizendo: Nada tenho contra o meu próximo. Simeão (Bordéus, 1862)". (4)

Misericórdia! Ao invés de estudar as razões das ofensas, passei a pensar e aplicar a atitude de misericórdia. Mentalizei meus supostos adversários que me traziam más recordações e os envolvia em luzes de cores calmantes. Orei com sinceridade pedindo a Deus por eles.

Lamentavelmente não pude fazer o que faria hoje se estivesse no corpo: os procuraria para um abraço sincero.

Misericórdia, inclusive para mim, foi o que pratiquei, pois perdi, além de tudo, a minha paz. Autoperdão, admitir a minha participação em tudo aquilo que tinha motivo para queixar. Como é doloroso tomar contato com as nossas ilusões.

Incrível! Hoje tenho conhecido dramas terríveis de pessoas que foram efetivamente feridas e dilaceradas na vida física, e que se encontram aqui nessa casa de amor em estados melhores que o meu.

Como nós espíritas nos ferimos sem motivos reais para tanto!

Somente quando conseguirmos rir das atitudes que nos feriram, estaremos nos curando.

Quanta arrogância totalmente necessária em uma obra que nem nos pertence!

Que vergonha a minha! Como eu gostaria que tudo tivesse sido diferente! Sem dissensões, inimizades, perdas.

Só tenho uma virtude em toda a minha história. Não desisti de refazer meus caminhos. Talvez por isso sofra tanto. Por isso estou aplicando a misericórdia comigo também.

Não existe para mim conceito mais claro de misericórdia que acolher com afeto e carinho, estímulo e alegria o valor alheio, ceder da minha importância pessoal em favor da motivação de outrem para sua caminhada.

Hoje, creio sinceramente que se concedermos apenas uma hora para analisarmos as imperfeições e usarmos o restante do tempo para nos amar, a vida nos presenteará com mais motivos para ser feliz.

Penso muito em Jesus. Sabendo de todas as nossas mazelas, mesmo hoje como espíritas, continua contando conosco.

Essa tem sido a minha força.

Saber que o Mestre ainda conta comigo tem sido meu descanso, minha motivação.

Obrigado a todos por me ouvirem.


1. O Evangelho Segundo o Espiritismo - Capítulo 10 - Item 10
2. O Evangelho Segundo o Espiritismo - Capítulo 9 - Item 9
3. João, 3:30
4. O Evangelho Segundo o Espiritismo - Capítulo 10 - Item 14